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Três Anúncios Para um Crime e a multiplicação do ódio

O seguinte artigo analisa os aspectos da vingança que permeia o novo filme do diretor Martin McDonagh e sua influência nas personagens, “Três Anúncios Para um Crime”. Contém spoilers. 

Em uma pequena cidade, no interior estadunidense, hábitos são formados e definem o caráter de quem ali vive. O pior deles é o de não saber lidar com os desagradáveis desvios da vida (afinal, quem sabe?). Sendo assim, temos aqui três personagens das quais precisamos falar. São elas o xerife Willoughby (Woody Harrelson), o detetive Dixon (Sam Rockewell) e a moradora Mildred (Frances McDormand). Cada um da sua maneira carrega uma dose de raiva em si. Essa carga negativa pode ser vista como o propulsor do filme.

“Três Anúncios Para um Crime” possui em seu desenvolver caricaturas e deboches, do olhar estrangeiro do diretor, sobre o que pensamos que é o sul norte-americano. De tão absurdos, alguns fatos e posturas são palpáveis se relacionados a atualidade. Em tempos de intolerância explícita ao outro (o “diferente”), esse longa metragem não tem a intenção de dar esperança a ninguém. Ele aborda o que há de pior na sociedade egoísta.

Movida pela dor do estupro e assassinato de sua filha, Mildred decide “cutucar” a polícia local para que eles investiguem de maneira efetiva o crime. O xerife, dedicado e proativo está em um momento delicado ao descobrir ter um câncer que o consumirá em breve. Dixon sabe que em seu cargo de policial possui liberdades e poder que não pode exercer dentro de sua própria casa, controlada por sua mãe.

Em princípio achamos que apenas uma da personagens pode ser definida como preconceituosa, mas a medida que a trama as se desenvolve o que fica perceptível é que todos naquele ambiente estão intoxicados pelo mal do “universo umbigo”. São egoístas, fechados em suas armaduras, apontando seus sujos dedos para os que estão em seu entorno.

Willoughby e Dixon: a lei

Das personagens mais “suaves”, este homem (Willoughby) se encontra em posição de destaque na comunidade. Ele representa a lei e a moral daquele ambiente. É justo e correto ao cumprir seu dever. Transmite ao espectador a afirmação de ser o marco do senso de justiça naquela delegacia frequentada por paspalhos falastrões. Ainda assim, possui um vocabulário que demonstra que ele é apenas mais uma pessoa que não consegue lidar com o que está além de uma concepção branca, cristã e heterossexual.

O xerife é o único policial que não é apresentado de maneira idiotizada pelo texto do filme. Ele é conciso, como se fosse um pai dos seus subalternos – e da cidade -, mantendo o bem estar de tudo e todos. Com seu suicídio, há o desequilíbrio dos homens da cidade, que passam todos a odiar imensamente aquela mulher que provocou nele esse desejo pecaminoso. Percebam que mesmo a reação isolada de Mildred ao afrontar o padre que a visita (pedindo que ela retire os outdoors), se liga a essa idealização de catalisadora da morte.

Ao seu lado, Dixon, é o pior exemplo de policial possível. Ignorante, preconceituoso, fazendo uso do status para abusar do poder, é conhecido na cidade por espancar negros. É também controlado pela mãe, que o humilha e, diante disso busca afirmar a sua ausência de autonomia por meio do poder que o cargo lhe dá.

Ambos representam o sistema de segurança falho, que é questionado por Mildred e também – unidos a comunidade que os enxerga como afirmação do que é correto -, o poder sobre o corpo feminino. Enquanto uns (Mildred e Willoughby) fazem o que está ao seu alcance outros (o restante da delegacia e o pai) , em sua maioria, ignoram aquilo acomodados na certeza de que não há o que mudar – e nem o porquê tentar, já que aquilo não os atinge.

Mildred: a comunidade

Mãe em luto pelo brutal assassinato da filha, esta mulher se torna uma pessoa amarga, capaz de agressões físicas contra aqueles que cruzarem o caminho de sua empreitada. Ainda, possui “bom coração” e tem momentos que demonstram o mix de sentimentos embaixo da máscara da justiça.

Mesmo assim ela parece desprovida de todo sentimento que não seja o de justiça. Ao mostrar seu relacionamento com os filhos, percebemos que se trata de uma família atingida por problemas de relacionamentos. Antes (a discussão calorosa com a filha na qual o vocabulário e diálogo se opõem a idealização de uma família conservadora, como a cidade parece ser) e, depois (o filho lamentando no carro a atitude da mãe), são dois pontos que expressam que ela já estava “em pedaços” antes da tragédia.

Com a aparição de seu marido, que após a morte da filha a troca por uma jovem e, explicitamente a violentava, essas feridas são mais perceptíveis ainda. Mildred é o espelho daquela comunidade falida moralmente, que se prende a ilusão de que seu funcionamento é o ideal, até que algo mais profundo e de interesse dos que estão incluídos os desestabiliza.  Seu questionamento é um sinalizador de que ali, a real justiça está sendo ignorada há muito tempo.

Coadjuvantes: ambiente

O filme peca ao desenvolver os coadjuvantes. Ora eles são suprimidos e voltam com um desenvolvimento precário, ora surgem em meio a trama sem muita explicação que afirme sua necessidade no contexto.

Uma delas, Denise (Amanda Warren) amiga da protagonista, presa por Dixon como maneira de retaliar a ação de Mildred é um bom exemplo. Ela representa a população negra, hostilizada pelo policial. Representa também um meio de potencializar a ira da mãe em luto. Porém, após a sua prisão esta só volta a aparecer no fim do filme, feliz e sorridente como se os problemas relacionados ao seu gênero ou etnia tivessem sumido como em um milagre.

Precisamos entender que o tempo dentro de uma narrativa funciona de uma maneira diferente, mas se o filmes se propõe veicular uma realidade ele precisa no mínimo ser coerente. Há também o ex-marido, que vem para explanar mais sobre aquela família desfeita. Ele, como foi dito, é violento. Em sua aparição há a afirmação desse perfil. Seu “fechamento” é um dos poucos que parecem coerentes, pois há o perdão de Mildred no momento em que ela desiste de sofrer pela vida.

Não podemos dizer o mesmo de James (Peter Dinklage), que está ali como mais uma das vítimas de Dixon e, posteriormente, da falta de bom senso de Mildred, sem ligação consistente com os argumentos. Uma espécie de meio de resolução de algumas atitudes (sua milagrosa aparição após o incêndio para isentá-la da culpa). Outro que  deveria ter maior destaque é Red Welby (Caleb Landry Jones), proprietário da empresa de publicidade de Ebbing. Sua personagem adquire valor ao possibilitar a denúncia pelos outdoors e ao resistir as intimidações dos membros da delegacia. Sua finalização em meio a uma crise de choro, após ser espancado e defenestrado por Dixon, dando suco ao seu algoz, chega a desvalorizar sua força. A atitude é de bom grado, mas não era necessário que deste ponto em diante ele desaparecesse.

A redenção do injustos

Cada vez mais próximo de seu fim, as soluções dos rumos que as vidas das protagonistas tomam são definidas. Avaliando especificamente a decisão tomada para a finalização da personagem Dixon, apresento mais um ponto de incomodo com a obra.

Após quase duas horas de tentativas de criar empatia com o público (e sim, creio que alguns foram atingidos), nosso “vilão” é tocado pelo poder das palavras. Ao ler a carta deixada por Willoughby (lembrando que este se suicidou), algo muda no policial. Somado ao incêndio que o lesiona é como se ele descobrisse que esteve errado por anos. Com isso, há sua mudança para uma espécie de “herói” que percebe que poderia ser um profissional melhor se mudasse sua atitude.

Percebam que não há rendição ou tentativa do mesmo de dizer “investiguem o que eu fiz de errado” e sim “vou por a mão na massa e me tornar um justiceiro”. O que eu quero levantar com isso não é um marco extremista afirmando que o filme é ruim, mas sim apontar que os caminhos ao quais o espectador são levados, são caminhos que não ampliam o pensamento sobre os assuntos abordados no decorrer da trama.

Após horas nos colocando a par de violência contra as mulheres, racismo, espancamentos, piadas homofóbicas, bullying; tudo é despejado no ralo quando o ícone da culpa, estabelecido desde sua primeira aparição escolhe ser alguém melhor. Aponto essa inconsistência, pois preconceitos são formados no decorrer de nossas vidas e, ao observar a relação de Dixon com a mãe, é perceptível como em sua criação todos os embriões discriminatórios são fundados. Logo, é incoerente e desonesto trazer muito rápido essa mudança.

Podemos perceber que falta “tato” no desenvolvimento do roteiro para delimitar isso. Observo que se o filme se encerrasse com ele no bar, ouvindo a história do soldado sobre o estupro coletivo e cogitando agir (sequencia na qual ele sai do bar e visualiza a placa do carro), seria melhor. Caberia na perspectiva de alguém que pode – ou não – estar mudando sua postura.

Em um filme que possui uma trilha sonora que acolhe, que sabe fazer uso da cor vermelha para confirmar que há impunidade naquele clima e que conta com duas interpretações excelente e dignas de suas indicações, os aspectos citados acima precisam ser vistos.

Perceber que o filme carece de um diretor com mais experiência e uma revisão nas subtramas, demonstra que sobrou inocência em sua execução.  Esses detalhes que podem passar desapercebidos para alguns são exemplos de que é necessário selecionar. Hastear ou não uma bandeira? Usar um exemplo de discussão contemporânea como pano de fundo? Mesclar vários assuntos em voga e desenvolve-los de qualquer maneira? Apenas executar um filme com primor estético?

Não há uma resposta exata para as perguntas acima, mas há a certeza de que podia ser de outra maneira que valorizasse mais, a beleza visual apresentada. Em “A Forma da Água” a maneira como os preconceitos são apresentados é orgânico, se fundindo a trama e reforçando o caráter do homem-peixe naquela história. Um exemplo de como levantar discussões sem excessos. Em “The People v. O.J. Simpson” a maneira de controlar a opinião pública por meio de assuntos vinculados as mazelas das minorias.

Ao fim de “Três Anúncios Para um Crime”, me senti como ao terminar de ver “O.J.”, me questionando o quanto os temas polêmicos são necessários mais ao nosso tempo (externo) do que ao do filme. Não devemos levantar questões, que sejam difíceis de resolver para, por meio do entretenimento/arte, criar a excessiva ilusão de que as resoluções vem em passe de mágica. É preocupante o “efeito Dixon” nos que passaram a crer que os preconceitos se dissolvem ao toque de um bom argumento, desde que feito por aqueles que você ama. Se forem feitos por outros, serão sempre balelas.

Nota: 3,5/5

Yasmine Evaristo

Artista visual, desenhista, eterna estudante. Feita de mau humor, memes e pelos de gatos, ama zumbis, filmes do Tarantino e bacon. Devota da santíssima Trindade Tarkovski-Kubrick-Lynch, sempre é corrompida por qualquer filme trash ou do Nicolas Cage.

3 comentários sobre “Três Anúncios Para um Crime e a multiplicação do ódio

  • Chocada com esse filme, vi muito dele no oscar mas ainda não assisti e confesso que atualmente não tenho vontade. Acho que é um filme forte por tudo que a resenha trouxe principalmente sobre o preconceito e violência nessa cidade. Mas espero ter vontade de vê-lo no futuro

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  • Acho sua crítica bem coerente, de fato, fica uma banalização quando um personagem que aparentava ser de todo incorreto por seus conceitos (do qual acredito não ser um pré-conceito), formados e alimentados durante todos os anos de sua formação, por causa de uma carta se sensibilizar e representar a mudança, ser o bonzinho. Infelizmente, em Hollywood tem muito disso. Acho que é uma fórmula que deve agradar e trazer bons lucros no final.

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