Resenha: Uma História de Solidão, de John Boyne
Nome do Livro: Uma História de Solidão
Nome Original: A History of Loneliness
Autor: John Boyne
Tradução: Henrique de Breia e Szolnoky
Editora: Companhia das Letras
ISBN: 9788535926729
Páginas: 416
Ano: 2016
Nota:
Onde Comprar: Amazon
Primogênito de um lar disfuncional na Irlanda, o inocente Odran Yates vai estudar em um colégio que prepara garotos para a vida eclesiástica. Ao relatar sua jornada, da ingenuidade dos primeiros anos de colégio à descoberta dos segredos mais bem guardados da Igreja, Odran descreve uma Irlanda cheia de contradições e ódio por trás de uma fachada de bons costumes.
Enquanto lida com as implicações de seu trabalho e o sofrimento das pessoas que ama, o padre Odran se convence de que era inocente demais para entender o que acontecia ao seu redor e tenta fazer um acerto de contas com a própria consciência.
Uma história de solidão é um livro triste, sobre a humanidade e algumas das piores coisas que nos tornam humanos.
Essa história engloba o período na Irlanda onde ocorreu o escândalo da pedofilia na igreja católica. Estima-se que mais de dez mil crianças foram abusadas ao longo de 70 anos. A narrativa é feita por um padre que viveu essa época na Irlanda e mostra a sua visão dos fatos. Ele não é abusador (já aviso, caso alguém rejeite o livro achando que é narrado por um pedófilo), mas demonstra a sua culpa pela omissão, incentivada no meio em que vivia.
Padre Odran Yates é o narrador e personagem principal, mesmo que tenha passado a vida como coadjuvante e observador. Sua história mescla passado e presente, de forma parecida com o que feito no livro “O Ladrão do Tempo”, de John Boyne. O livro não segue uma linha cronológica e isso funciona muito bem para as pequenas surpresas ao longo da leitura. É até curioso que uma história que fale tanto sobre vocação, seminários, igreja e padres, não tenha a fé como tema central. Ele mostra o lado prático e não a versão romântica das incumbências dos padres e os perigos de se ter uma instituição com tanto poder e influência, capaz de acobertar atrocidades para se manter longe de um escândalo. Acredito que seja em respeito a religião que Deus praticamente não seja citado, pois as pessoas associadas a ele certamente não estavam agindo de acordo com seus ensinamentos.
“Enquanto retornava pelas ruas a caminho do conforto da minha cama solitária, eu sabia, sem sombra de dúvida, que o mundo que eu conhecia, e também a fé que eu depositara nele, estava prestes a terminar, e quem poderia saber o que tomaria o seu lugar.” (pág 26)
A igreja católica representada neste livro é uma instituição mais política do que religiosa. Pais que não querem os filhos ou filhas por perto os depositam nos seminários e conventos para se tornarem padres ou freiras e assim não ter a incumbência de seu sustento ou ter que lidar com as consequências de seus atos. Numa época em que a psicologia e a psiquiatra não eram populares, eram os padres os mediadores entre brigas de casais ou quem conversava com uma criança mal-criada para tentar persuadi-la a se comportar melhor. A autoridade e respeito que detinham era alta entre os fiéis da igreja, ou até mesmo com os não tão fiéis que queriam ter essa aparência. No livro é possível ver a amargura causada pela obediência cega e pela misoginia. As mulheres na igreja foram e (ainda são) tratadas como serviçais, promíscuas por natureza, culpadas pela sedução de todo e qualquer homem envolvido, incapazes de raciocínio lógico o suficiente para serem donas de si mesmas; portanto quem é responsável é o pai, marido, irmão ou – no caso de ser freira, os padres da igreja. Mesmo havendo espaço para o ingresso de mulheres na igreja católica, é impossível que ascendam no meio político da igreja. Essa separação entre homens e mulheres é tão intrincada que acaba promovendo o ódio de padres e demais representantes masculinos dessa instituição pelas mulheres em geral. É difícil apreciar o que não se entende e não se é dada a oportunidade de entender. Temos várias demonstrações de ódio pelas mulheres no livro. Algumas mais sutis, mas bem representadas pelo autor.
Também está representado através do narrador, o sofrimento dos padres e religiosos que não faziam parte dos odiadores de crianças e mulheres e que aceitavam as diferenças inclusive dos homossexuais. Como sempre acontece, todos sofrem, inclusive os que não cometeram diretamente os crimes. No momento em que a verdade dos horrores cometidos por alguns padres vem à tona, os demais sofrem com o preconceito que se estende a todos os usuários da batina. Não posso dizer que é injusto, visto que no próprio personagem existe culpa, mesmo que possa ser considerada menos grave. É impossível visualizar o sofrimento alheio no livro e ficar indiferente.
O tema é sempre atual e deverá ser discutido e revisitado para que não seja esquecido e voltem a ocorrer os mesmos erros. Recentemente, o filme Spotlight, ganhador do Oscar 2016 de melhor filme, abordou a mesma história por outra perspectiva: a dos jornalistas atrás de um furo de reportagem. No livro temos um pequeno vislumbre desse lado, mas a perspectiva seguida é a de um padre vivenciando e participando dos acontecimentos. Nós somos um apanhado de tudo o que vivemos desde o nosso nascimento e a influência que os momentos de expectador têm em nossa vida é que definem quem realmente somos. Não é fácil fugir do que fomos condicionados a acreditar de uma forma ou outra, mas é possível.
A edição da Companhia das Letras está impecável, como é o costume da editora. Não encontrei erros de revisão, a diagramação é simples mas funcional, e as páginas são amareladas e confortáveis à leitura. A capa remete à original e ilustra bem o título do livro e um acontecimento marcante na narrativa. Recomendo a leitura a todos os fãs de John Boyne, pois é mais um ótimo livro do autor. Indicado a todos os interessados em conhecer mais de um lado sobre os abusos de crianças e a história nada glamourosa da igreja católica.