Resenha: A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha
Nome do Livro: A Vida Invisível de Eurídice Gusmão
Autor(a): Martha Batalha
Editora: Companhia das Letras
ISBN: 9788535927061
Ano: 2016
Páginas: 188
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Guida Gusmão desaparece da casa dos pais sem deixar notícias, enquanto sua irmã Eurídice se torna uma dona de casa exemplar. Mas nenhuma das duas parece muito feliz nas suas escolhas.
A realidade das Gusmão é parecida com a de inúmeras mulheres nascidas no Rio de Janeiro nos anos 1920 e criadas para serem boas esposas. São as nossas mães, avós, bisavós; invisíveis em maior ou menor grau, que não puderam protagonizar as próprias vidas, mas que agora são as personagens principais do primeiro romance de Martha Batalha. Uma promessa da ficção brasileira que chega afiadíssima para contar uma infinidade de histórias bem costuradas e impossíveis de largar.
A autora deixa claro desde a nota deixada no início do livro que essa história foi baseada na vida de nossas avós, ou seja, na vida das mulheres que nasceram nos anos 1920. Mesmo sendo um livro de crítica à sociedade da época e sua obsessão pelas “aparências”, Martha Batalha mostra uma narrativa deliciosa, super fluída, divertida e que não dá vontade de largar.
Ter Eurídice e Guida Gusmão como personagens principais dessa narrativa abrange duas classes sociais muito diferentes: a classe média alta e a classe baixa. Sem ter ordem cronológica, sabemos sobre toda a vida de Eurídice a quem a autora chama de “a mulher que poderia ter sido” e percebemos o seu potencial latente. Mesmo cheia de oportunidades Eurídice se viu tendo que abandoná-las simplesmente por ser mulher, uma pessoa que deveria ser direita, recatada, devia manter as aparências, precisava cuidar da casa, dos filhos e do marido. Insatisfeita com o que tinha – mesmo não lhe faltando dinheiro para qualquer “excentricidade” que lhe passava pela cabeça – ela passa a encher seu tempo com outros afazeres: novelas, livros e as obrigações já pré-determinadas de uma mulher casada. Nada parece ser o suficiente porque tudo é frustrante e não alcança o potencial existente na personagem.
“E foi assim que concluiu que não deveria pensar. Que para não pensar deveria se manter ocupada todas as horas do dia, e que a única atividade caseira que oferecia tal benefício era aquela que apresentava o dom de ser quase infinita em suas demandas diárias: a culinária. Eurídice jamais seria uma engenheira, nunca poria os pés num laboratório e não ousaria escrever versos, mas essa mulher se dedicou à única atividade permitida que tinha um certo quê de engenharia, ciência e poesia.” (pág 12)
Guida é uma mulher mais “clássica” e age da forma que esperam que o faça no início de sua vida, porém suas escolhas não se provam as mais acertadas e ela passa por grandes dificuldades, superando-as da mesma forma que muitas outras mulheres em sua situação tiveram que fazer: com competência, alegria e criatividade. Pelo menos até onde lhe foi possível. Ao ver-se em dificuldades encontra almas caridosas no meio de outras mulheres que tentam ajudá-la por já terem estado em situação parecida ou conhecer alguém que esteve, demonstrando o quanto o preconceito e as aparências só existiam para enganar algumas poucas pessoas jovens, pois aquelas que vivem no mundo sabiam exatamente como ele era e o que poderia acontecer às mulheres – com qualquer uma, sendo ela “direita” ou não.
Até mesmo Zélia, a vizinha fofoqueira de Eurídice, ganha um background provando que esse é um livro de mulheres e todas (ou quase) tem importância. Os homens coadjuvantes dessa história, que não é só uma narrativa mas várias contidas em uma, também ganham pequenas biografias para compreendermos que suas ações não são acidentais. Antenor, marido de Eurídice, que sempre é considerado um bom marido mesmo que tenha seus defeitos, é de fato um bom companheiro para uma mulher conformada com a sua condição de objeto decorativo do lar e capaz de cumprir todas as obrigações que o casamento lhe impõe. Jamais exige nada além do que lhe é de direito e faz todo o possível para prover um bom sustento e dar atenção aos filhos. Ele é esmiuçado no livro e mostra a sua simplicidade e falta de entendimento para compreender Eurídice pois jamais imaginou que ela pudesse querer ser algo que não lhe foi atribuído por sua condição de mulher.
Uma das coisas que faz esse livro ser sensacional é que além das histórias que ele conta esmiuçando a vida dessas duas mulheres e pincelando informações sobre o jeito de ser de outras tantas, é que ele não conta a história de Das Dores, empregada de Eurídice ou da funcionária negra chamada Damiana. Essas fazem parte da classe mais baixa e mais sem importância para a sociedade e propositalmente estão fora da narrativa, assim como estavam fora dos pensamentos das pessoas na época. O fato de terem tão pouca importância na narrativa mesmo contracenando diretamente com Eurídice tem tanto impacto ao marginalizar essas personagens quanto se a história delas fosse contada diretamente pela autora.
A editora Companhia das Letras caprichou na capa do livro, contendo um penteado clássico da época em que se passa a narrativa e uma mulher sem rosto para que você mesmo possa imaginar que ela seja qualquer das mulheres da narrativa ou do mundo na época. A revisão está impecável. Impresso em papel pólen soft e com letra de tamanho e espaçamento confortáveis, A Vida Invisível de Eurídice Gusmão é daqueles livros que você lê sem sentir cansaço.
Com somente 188 páginas, esse livro fala mais do que muitos com mais de 800. Histórias bem construídas – que tem uma boa transição de uma para outra – com personagens concisos e caricatos. É um prato cheio para quem espera ler mais autoras mulheres, brasileiras e que escrevem sobre mulheres. Super recomendado para todos!