Resenha: A vida de Philip K. Dick, de Anthony Peake
Nome do Livro: A vida de Philip K. Dick: O homem que lembrava o futuro
Nome Original: A life of Philip K. Dick: the man who remembered the future
Autor: Anthony Peake
Tradução: Ludimila Hashimoto
Editora: Seoman
ISBN: 978-85-5503-009-3
Páginas: 272
Ano: 2015
Nota: 4/5
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Anthony Peake nos traz um relato surpreendente sobre a complexa vida particular de Philip K. Dick e desvenda seu trabalho como um dos escritores mais ousados, corajosos e, também, um dos mais estranhos e influentes ficcionistas do século XX. PKD casou-se cinco vezes e viveu de forma frugal, durante décadas, enquanto produzia algumas das mais notáveis histórias de ficção científica que o mundo já viu. Na adolescência, já exibindo sinais de instabilidade mental, foi capaz de criar enredos de ficção visionários e únicos inspirando-se em conceitos originários do budismo, da cabala, do cristianismo gnóstico e outras doutrinas herméticas. Nesta biografia, Peake trata de forma abrangente todo o trabalho, a vida e a obra do mais místico escritor de ficção cientifica de todos os tempos.
Uma biografia convencional não serviria para contar a vida de Philip K. Dick. Para explicar sem cinismo ou malícia os complexos fenômenos que PKD alega ter vivido a partir dos anos 1950, Anthony Peake deve ser tão perturbado quanto ele foi.
Anthony Peake começa o livro explicando como PKD previu que eles se cruzariam através de uma série de coincidências que inclui o livro VALIS, que foi usado por Peake em 2007 para uma apresentação, e alguém da platéia que estava lendo o livro naquele momento (inclusive a exata capa que Peake usou na apresentação). O expectador avisou que em Regresso ao passado há o personagem Anarch Peak, portanto PKD poderia ter previsto esse encontro.
Peake reforça o mito de PKD ser um gênio louco, alguém com uma visão tão aguçada do futuro que tinha dificuldade em se fixar no presente.
Não é necessário ler todos os livros de PKD antes de ler essa biografia. Se fosse recomendar o mínimo necessário para a melhor compreensão, as novelas O homem de castelo alto, VALIS, UBIK e Regresso ao passado são as mais importantes na abrangência da teoria apresentada por Anthony Peake. O autor coloca 19 das mais importantes obras de PKD em quadros separados, com uma citação relevante do livro, um pequeno resumo, curiosidades e uma curta interpretação. Esses quadros estão posicionados no mesmo período cronológico que a biografia está acompanhando, facilitando a compreensão do que o autor estava vivendo na época do lançamento.
Não li as outras biografias de PKD, todas em inglês, mas já pesquisei uma grande quantidade de material na internet enquanto lia as novelas do autor a partir dos anos 2000. Fiquei surpreso com algumas novidades que o livro traz: as fobias, a grande quantidade de relacionamentos amorosos (especialmente com morenas) e os episódios de violência doméstica. Assim como a maior parte dos eventos que circundam a vida de PKD, não há uma única versão para cada um dos fatos e muitas dessas versões são contraditórias mesmo quando apresentadas pelo próprio PKD em entrevistas ou cartas ao longo dos anos. E ainda há versões diferentes dos amigos pessoais, ex-esposas e outros biógrafos. É difícil chegar a um consenso mesmo sobre detalhes que poderiam ser dados como certos para qualquer outra pessoa.
Sempre soube que muitas das novelas de PKD contém experiências pessoais, principalmente VALIS, mas subestimei completamente essa noção. Um fortíssimo exemplo é apresentado na página 96, que conta como a terceira esposa de PKD, Anne, fez um aborto contra a vontade dele. No conto We can build you a personagem Pris, que foi claramente inspirada em Anne, esmaga um robozinho com o salto alto. Em outra passagem, Pris está trocando o azulejo do banheiro por um padrão idêntico ao que Anne fez na residência do casal na época, para não restar dúvidas.
O evento mais significativo da vida de PKD, que tem grande destaque nessa biografia, ficou conhecido como 2-3-74. Trata-se de um período entre fevereiro e março de 1974 quando o autor vivenciou uma experiência única que ele chamou de “teofania” e passou o resto da vida tentando compreendê-la completamente. Segundo PKD, uma complexa rede de eventos e condições (entre elas, o amplo uso de anfetaminas, narcóticos, LSD, diuréticos e remédios para amenizar uma forte dor de dente) se encontraram para que ele fosse atingido por um raio de luz rosa que enviou imagens e informações diretamente para seu cérebro durante esse período e em alguns outros momentos nos anos subsequentes. Segundo PKD, essa luz rosa emanou do pingente de peixe (o símbolo cristão) usado por uma mulher que estava entregando remédios da farmácia. Tentando compreender essa experiência, ele começou a escrever sua Exagese, em que descrevia com detalhes tudo o que vivenciou e buscou respostas em todas as suposições possíveis: que tenha entrado em contato com uma divindade, auto-hipnose, drogas, surto psicótico, inteligência alienígena, separação dos hemisférios do cérebro.
(2-3-74 no quadrinho “A experiência religiosa de Philip K. Dick”, desenhado pelo conceituado quadrinista Robert Crumb, disponível aqui)
Dotado de grande inteligência e obstinação, nos anos seguintes PKD coletava toda nova pesquisa divulgada em artigos científicos para interpretrar e encaixar na Exagese, formando por fim um mosaico tão complexo quanto insondável que somava mais de 1000 páginas. O que quer que ele estivesse estudando na época era adaptado e distorcido até servir de explicação plausível. São necessários vários níveis de aceitação de suposições precárias para chegar a conclusões que são mirabolantes e impecáveis na lógica.
Entre as muitas teorias levantadas por PKD e amplamente embasadas por pesquisas neurológicas publicadas na época, está a que o homem primitivo trabalhava com menos comunicação entre os dois lados do cérebro. A partir da teoria de que cada lado do cérebro possui uma personalidade distinta, PKD chegou à conclusão de que o homem primitivo ouvia vozes que associava aos deuses e a divindades, quando na verdade era a comunicação precária entre o hemisfério direito e o esquerdo do cérebro. Quando os dois hemisférios começaram a trabalhar de maneira integrada, a perda da capacidade de comunicação com o divino é chamada de “a queda”, como visto nos textos religiosos. PKD acreditava que os eventos que vivenciou em 2-3-74 poderiam ser explicados por uma divisão entre a percepção dos hemisférios do cérebro, que o colocaram em contato com facções da realidade antes inacessíveis.
A parte dois do livro, intitulada “A explicação exotérica”, é amplamente especulativa e nos faz duvidar da sanidade do biógrafo ao encaixar as experiências vividas por PKD entre os anos 1950 e 1980 com teorias da física, psicologia, exoterismo, misticismo e teologia. A partir de então o livro fica mais maçante, mas talvez mais interessante se você se deixar levar pelas conspirações. Algumas das fontes de referência para a montagem desta biografia parecem muito interessantes, principalmente Rebembering Firebright, escrito por Tessa Dick, quinta e última esposa de PKD. E são amplas as fontes, num total de 421 referências em todo o livro entre biografias das ex-esposas, cartas, quadrinhos e fontes científicas.
O selo Seoman acertou em cheio na escolha da tradutora: Ludimila Hashimoto já traduziu diversas novelas e contos de PKD para a editora Aleph. O conhecimento prévio desses trabalhos na íntegra é essencial para uma boa compreensão dessa complexa biografia. Infelizmente a revisão deixou um pouco a desejar, encontrei um grande número de pequenos erros de digitação, inclusive um hilário “garota morna” (página 136) ao invés de “morena”. A capa é muito chamativa e dá a ideia de um quebra-cabeça montando o rosto do autor (que não é uma foto de verdade, mas um desenho). Acho que PKD aprovaria essa linguagem visual. O livro é muito confortável de manusear, fica aberto facilmente em uma mesa sem vincar, mesmo depois de ler e carregar o livro para todo lado ele ainda parece novo. O título em alto relevo e com aparente desgaste na tinta das letras é perfeito para a ideia de entropia defendida por PKD.
Agora um breve relato da minha experiência pessoal com os livros de PKD: o primeiro contato que tive com os livros de PKD foi com a novela A invasão divina (editora melhoramentos, 1987) que encontrei por acaso enquanto procurava livros de ficção científica. Fiquei encantado com a abordagem que incluía elementos religiosos e proféticos na trama e comecei a procurar outros livros do autor. Infelizmente, mais da metade deles eram no português lusitano e tinham graves falhas na tradução. Geralmente eram edições de bolso caindo aos pedaços, com exceção apenas de O homem de castelo alto e Identidade perdida (lançados pela editora brasiliense) e Blade Runner – caçador de andróides (editora Francisco Alves). Além disso, na condição de clássicos cult muitos desses livros esgotados tinham preços absurdos e eram muito difíceis de encontrar, cheguei a ponto de ir a todos, realmente TODOS, os sebos de minha cidade para revirar as infindáveis fileiras de livros de bolso da editora Argonauta e Europa-América procurando os livros de PKD. A felicidade de encontrar um deles era equivalente a acertar na loteria. Mas todas essas dificuldades não me desmotivaram. Assim que aprendi o inglês básico comecei a desbravar as obras no original, muito mais acessíveis para importação. Ironicamente, quando já havia sofrido para ler a maioria das novelas, a editora Aleph começou a lançar edições novas e maravilhosas dessas novelas que eu tanto sofri para conseguir exemplares antigos com traduções precárias e desatualisadas. Lendo tantas obras tão diferentes entre si, muitas vezes uma após a outra, fiquei com a vívida impressão de que o início e o final do livro frequentemente não tinham relação alguma (depois descobri que com frequência ele utilizava dois contos diferentes com um gancho para montar uma novela).
Para PKD não é suficiente contar uma história, ele precisa levar o leitor a questionar o que o cerca, ele vende sua psicose como um spray enlatado e derruba os pilares do que você via até então como realidade concreta. Não é incomum terminar um livro se perguntando se, afinal, tudo o que conhecemos não passa do sonho de uma criatura divina. Ou ainda que nosso corpo físico não existe, que tudo o que experimentamos é apenas informação jogada diretamente no cérebro, mas essa massa insondável pode estar em qualquer lugar do universo ou fora dele, o que explicaria a dificuldade dos cientistas e médicos em estudar como uma parte tão importante do corpo funciona.
PKD ficaria encantado e horrorizado com as complexas realidades virtuais que a computação do século XXI está criando, com os smartphones e a abrangência da tecnologia, mas certamente ele não ficaria surpreso: tudo isso ele já previu, ele é o homem que nasceu no passado e lembrava o futuro.