Na mira dos lançamentos: Companhia das letras (maio/2016)
Caravaggio e Quevedo se enfrentando numa partida de pallacorda é mesmo uma senhora fantasia. Se a Europa seiscentista é como uma grande quadra onde se confrontam a Reforma Protestante e a Contrarreforma Católica, o pintor italiano e o poeta espanhol também encarnam o embate entre duas maneiras de viver e de fazer arte: Caravaggio, o artista apesar das circunstâncias, com sua sexualidade fluida, flertando com a marginália e o crime, reinventor da pintura para além de seus limites; Quevedo, o nobre cioso de sua honra, abraçado à mais reacionária e hipócrita moral católica que logo envolverá o mundo em censura e fogueiras, mestre genial dos sonetos, da homofobia e do antissemitismo.
Tendo como eixo esse conflito, Enrigue expande seu jogo em várias direções, farejando rastros de sangue, sêmen e ouro. Com a liberdade dos melhores romances, o autor segue atalhos que nos levam a tempos passados e futuros, ora cruzando o Atlântico, ora transitando dentro dos reinos europeus num bate e rebate estonteante. Os lances de Caravaggio abrem caminho a um desfile que inclui um curioso Galileu Galilei, um finório Pio IV e um são Carlos Borromeu tão fanático quanto obtuso, a par de banqueiros, prostitutas e mendigos, todos às voltas com pequenas intrigas paroquiais e grandes negociações que marcarão o destino do mundo. Os golpes de Quevedo carregam a decadente corte espanhola de Filipe III e dos duques de Osuna, e por meio da duquesa, neta de Hernán Cortés, nos levam ao México arrasado pelo conquistador de braço dado com uma surpreendente Malinche muito dona do seu nariz; ao martírio do imperador Moctezuma e de seu grande general Cuauhtémoc. E daí, ao princípio de nação construída sobre as ruínas astecas, abrigo das utópicas experiências de um padre que
leu a Utopia de Thomas Morus ao pé da letra, amigo e protetor de um gênio da arte plumária indígena, grande apreciador de cogumelos alucinógenos que espalhou suas obras-primas pela Europa e encheu os olhos de quem as soube olhar.
Mas engana-se quem vir em Morte súbita um romance histórico. Ele é muito mais do que isso: uma obra em que o passado factual é pretexto para especular sobre grandes questões dolorosamente presentes.
Numa noite de chuva ou numa tarde nebulosa, quem nunca se viu com um punhado de lápis de cor nas mãos e a imaginação às soltas? Neste livro de atividades de Andrés Sandoval, o autor — dotado de originalidade e inteligência particulares — oferece às crianças uma ajudinha para pintar o sete. Do jardim botânico ao universo das silhuetas, o leitor acompanha um garoto em suas andanças pelo mundo das cores e dos traços, e assim é convidado a participar, seja com lápis de cor, giz de cera, aquarela, seja apenas como observador — desta jornada pela criatividade.
“Tenho de agradecer-te, pai, o modo como sorrias quando eu chegava a casa e te abraçava, confuso pela tua presença breve, delicada, como uma brisa. Se um dia vier a acreditar em Deus, não quero relâmpagos e trovões, quero um sorriso delicado como aquele que aparecia no teu rosto.”
Flores começa com uma perda, a perda do pai. E é a partir daí que o narrador, um jornalista que vive com a filha e a mulher numa relação cheia de incômodos, passa a notar seus vizinhos e a conviver com o senhor Ulme.
Ulme sofre além da conta com as notícias que lê nos jornais e com todas as tragédias humanas às quais assiste. Certo dia percebe não se lembrar de seu primeiro beijo, dos jogos de bola nas ruas da aldeia ou de já ter visto uma mulher nua. Seu vizinho, talvez por ainda recordar bem do encanto do primeiro beijo – e constatar o quanto a sua vida se distanciava dele -, decide ajudar o senhor a escrever sua história e a recuperar as lembranças perdidas. Ele visita a aldeia alentejana esquecida no tempo e vai aos poucos remontando a identidade de Manuel Ulme, homem que, pelos relatos, parece ter oscilado entre um bom samaritano e um perverso entregue aos prazeres da paixão.
O contraste fica cada vez mais claro: enquanto um homem não tem passado e não se lembra do amor, o outro sofre com o presente e com a consciência da rotina que a cada dia destrói sua relação, quando um beijo já perdeu todo o encanto e se tornou tão banal quanto arrumar a cama.
Construído em capítulos curtos e com uma voz originalíssima, o romance de Afonso Cruz comove ao falar da memória, do que é o amor e das tragédias que acabam por virar banalidades.
Nesta aventura repleta de sonhos, ventanias, tempestades e invenções mirabolantes, a vovó moderna tem uma tarefa e tanto: tentar fazer com que o vô Astolfo deixe de ser tão dorminhoco e desanimado. Ela vai usar toda a sua ousadia, alegria e criatividade, mas só quando uma ajudinha da mãe natureza aparece é que algo vai, de verdade, mudar por ali…
Os bastidores da emenda da reeleição, crises internacionais e pressões especulativas contra a moeda brasileira, indecisões de fundo quanto à política cambial, a morte de dois fiéis escudeiros, supostos “escândalos” e chantagens.
Neste volume de seus diários (1997-1998), Fernando Henrique Cardoso registra alguns dos maiores desafios — tanto políticos quanto macroeconômicos — de seus anos no poder e transmite ao leitor a sensação palpável do áspero cotidiano presidencial.
Em meio à tenaz batalha para a implementação de reformas modernizadoras, tendo por aliados setores arcaicos do país ante a impossibilidade de acordo com a esquerda tradicional, o então presidente encontra tempo para reflexões premonitórias sobre o jogo de forças da política brasileira. Leitura indispensável para a compreensão do país hoje.
A jovem Pip Tyler não sabe quem é. Ela sabe que seu nome verdadeiro é Purity, que está atolada em dívidas, que está dividindo um apartamento com anarquistas e que a sua relação com a mãe vai de mal a pior. Coisas que ela não sabe: quem é seu pai, por que a mãe a força a uma vida reclusa, por que tem um nome inventado e como ela vai fazer para levar uma vida normal. Um breve encontro com um ativista alemão leva Pip à América do Sul para um estágio numa organização que contrabandeia segredos do mundo inteiro – inclusive sobre sua misteriosa origem. Pureza é uma história sobre idealismo juvenil, lealdade e assassinato. O mais ousado e profundo trabalho de um dos grandes romancistas de nosso tempo.
Neste livro já clássico, Fidel Castro falou a Frei Betto sobre religião durante 23 horas. Foi a primeira vez que um Chefe de Estado de um país socialista concedeu uma entrevista exclusiva a respeito desse tema sempre atual. Nas últimas décadas, a questão religiosa ganhou especial interesse, principalmente na América Latina, onde ditaduras militares assassinaram inúmeros religiosos que se colocaram ao lado da causa dos pobres. As milhares de Comunidades Eclesiais de Base que congregam camponeses e operários e a força da Teologia da Libertação são alguns dos fatores que fazem o tema da religião transcender os limites das próprias Igrejas e ganhar uma expressão política só comparável aos primeiros séculos do Cristianismo. Frei Betto revisita a obra escrita no início dos 1980 e traz de volta aos leitores o livro revisto e ampliado sobre o icônico líder cubano.
Quando o rato encontra uma mala no meio da sala, não sossega até saber o que tem lá dentro. Ela está fechada e parece impossível de abrir. Depois de muitas tentativas, ele até consegue destrancar a mala, mas o que ela guarda não é bem o que ele esperava… O que será?
Todo mundo faz aniversário, não tem como evitar. Alguns preferem festejar com vários amigos, outros não querem nem pensar sobre isso. O tempo vai passando e às vezes não percebemos que estamos crescendo: as brincadeiras mudam, outros pensamentos vão aparecendo, a imaginação se transforma. É o que acontece com Chico Bento nesta história clássica, escrita e ilustrada por Mauricio de Sousa e publicada pela primeira vez em 1982.
Em 1970, Waly Salomão esteve preso no Carandiru por portar, nas palavras do próprio poeta, “uma bagana de fumo”, e ali começou a escrever seu primeiro livro, Me segura qu’eu vou dar um troço, publicado dois anos mais tarde. Entre a prosa, a poesia e o ensaio, esta obra visceral e revolucionária se tornou determinante para o movimento de contracultura que floresceu no Brasil naquela década, tendo inspirado a apreciação crítica de leitores como Antonio Candido, Heloisa Buarque de Hollanda e Antonio Cicero. Incluído em Poesia total, este clássico contemporâneo capaz de nocautear o leitor por sua densidade e potência volta às livrarias em sua forma avulsa, com cronologia inédita do autor.
A teus pés é o primeiro e único livro de poemas que Ana Cristina Cesar lançou em vida por uma editora, em 1982. Além de material inédito, a obra reunia os três breves volumes que a autora havia publicado entre 1979 e 1980 em edições caseiras:
Cenas de abril, Correspondência completa eLuvas de pelica. Desafiando o conceito de “literatura
feminina” e dissolvendo as fronteiras entre prosa, poesia e ensaio, o eu lírico e o eu biográfico, Ana logo chamou a atenção de críticos como Heloisa Buarque de Hollanda e Silviano Santiago.Incluindo uma cronologia da autora, este clássico contemporâneo que integra Poética, a reunião de sua poesia completa, volta agora em forma avulsa às mãos do leitor, como foi idealizado pela autora.
Incluindo uma cronologia inédita, esta obra tão celebrada, que integra Toda poesia, volta em sua forma avulsa às mãos do leitor.
Exibindo um fantástico domínio técnico, um olhar original sobre as relações humanas e um ponto de vista singular para tratar a matéria imaginativa, Marcílio França Castro se debruça sobre as estranhezas que compõem a vida cotidiana.
Um dublê de mãos em filmes sobre escritores explora a relação entre o ritmo do dedilhado e o estilo de seus escritos. O assistente de um velho ator nota que este já não diferencia sua vida e as peças em que atuou. A partir de situações aparentemente corriqueiras, um mundo de extravagâncias absorve o leitor, fazendo-o desconfiar das armadilhas que construímos para nós mesmos e para os outros. Tudo isso sem que se perca de vista o prazer das melhores histórias.
Em 1993, Arcadio Diaz-Quinones, um dos maiores intelectuais de Porto Rico, publicouLa memoria rota, livro de ensaios sobre a polarização do mundo durante a Guerra Fria e a situação porto-riquenha. Mais de duas décadas depois, chega ao Brasil esta edição que reúne reflexões sobre o Caribe e um extenso caderno de fotos. Antologia inédita, traduzida e selecionada pelo professor da Universidade de Princeton Pedro Meira Monteiro, A memória rota reflete sobre as relações entre literatura e história, o poder das palavras e da cultura nas ilhas caribenhas. Um trabalho profundo e contundente sobre a história de um lugar que, embora geográfica, política e culturalmente distinto, dialoga muito com a realidade brasileira.
Do alto de seus 25 anos, Julia Tolezano, mais conhecida como Jout Jout, já passou por todo tipo de crise. De achar que seus peitos eram pequenos demais a não saber que carreira seguir. Em Tá todo mundo mal, ela reuniu as suas “melhores” angústias em textos tão divertidos e inspirados quanto os vídeos de seu canal no YouTube, “Jout Jout, Prazer”. Família, aparência, inseguranças, relacionamentos amorosos, trabalho, onde morar e o que fazer com os sushis que sobraram no prato são algumas das questões que ela levanta. Além de nos identificarmos, Jout Jout sabe como nos fazer sentir melhor, pois nada como ouvir sobre crises alheias para aliviar as nossas próprias!
Os amantes da melhor literatura têm um motivo a mais para celebrar: esta belíssima edição, com uma seleção dos melhores sonetos camonianos sobre o amor. Líricos, eletrizantes e insuperáveis, textos do autor de Os Lusíadas auscultam, a partir da forma poética difundida por Francesco Petrarca (o italiano reputado como o inventor do soneto), o coração de leitores apaixonados.
“Luís de Camões amou muito, sofreu muito, teve gozo no seu sofrimento e escreveu dezenas de sonetos (e canções, elegias, odes etc.) numa repetida tentativa de entender o que era essa coisa simultaneamente terrível e sublime”, escreve Richard Zenith na esclarecedora introdução ao volume.
Difícil definir os anos 1910. Na esteira das revoluções tecnológicas da virada do século, o ruído ampliou-se e a dispersão tomou conta. Todavia, a torrente de informações e opiniões não assusta André Dahmer. Na verdade, é desse caldo que ele tira algumas de suas melhores histórias. Quadrinhos dos anos 10 tem uma receita simples: três ou quatro quadros em sequência, contendo a mais dolorosa e mordaz crítica à vida moderna.
O humor dessas páginas nasce da mesma angústia que sentimos diante das complicações contemporâneas que o autor tenta destrinchar. Mas as tiras não são pesadas e duras: pelo contrário, são tão engraçadas quanto os absurdos do dia a dia. Um riso meio doído, mas um riso mesmo assim.