CríticasNetflix

Crítica | O Irlandês

Um filme de homens, feito para homens, num tempo de homens em crise.

Por Rafael Assis

A típica masculinidade mostra sinais de crise em todas as suas facetas. Diante de mudanças sociais e culturais imensas, homens lutam para manter suas posições, adaptar-se a novos padrões morais ou, em alguns casos, agarrar-se aos momentos de glória. Nessa batalha, a memória tem papel fundamental. “O Irlandês”, mais recente obra prima de Martin Scorcese, abre num plano longo através de um asilo. A câmera passeia com calma ao som de uma trilha agradável antes de repousar sobre um Robert De Niro idoso que a graça dos homens idosos nos convida celebrar a violência de sua vida. Assim, sem meias palavras, o filme te pega.

Al Pacino, Martin Scorsese e Rodrigo Prieto nos bastidores de “O Irlandês”

A trama é simples, acompanhamos a trajetória de ascensão de Frank (De Niro) no mundo do crime organizado americano pós segunda guerra mundial, onde aquilo que entendíamos como “máfia” ganha contornos mais mundanos. O jogo da política, dos sindicatos e das quadrilhas de lavagem de dinheiro são embebidas pelo charme que o cinema já havia dado à máfia italiana e aos contrabandistas de bebidas da lei seca americana. Não cabe aqui dizer que a violência é estilizada, mas sim que o mundo é. Seus momentos mais belos ou mais deploráveis estão sempre sob o filtro do bom cinema. Afinal, disso Scorcese entende. Seja no charme óbvio de um letreiro para anunciar a entrada de um capítulo ou em detalhes sutis como na cena em que um personagem se incomoda com uma bandeira a meio mastro para demonstrar seu sentimento para com a morte do presidente, o filme sempre está no controle absoluto do que quer dizer. Como espectadores estamos ali para sermos guiados.

Trunfo disso, além da técnica impecável do diretor, é o poderoso elenco escolhido. De Niro, Al Pacino e Joe Pesci não poderiam estar mais à vontade em seus papeis. Atuando com a tranquilidade de um atleta de alto desempenho fazendo uma apresentação beneficente. Todos nos mostram homens poderosos, mas sem glamour. Há sempre uma sensação de ausência de propósito nas ações dos personagens. Em oposição ao grande “O poderoso chefão”, de Francis Ford Coppola, não temos aqui um legado familiar, mas sim o rompimento dele. E isso se expressa nas expressões de Frank. Sempre sendo levado com a correnteza.

Se alguém se perguntar por que estes homens são criminosos, basta lembrar que todo o mote do filme ocorre por um encontro coincidente causado por um motor com defeito. Frank e os demais correm na roda, sem jamais se perguntar de onde ela veio.

Este papel cabe à Peggy, interpretada por Anna Paquim, que verbaliza exatamente isso num momento em que Frank se quebra diante de sua filha. De que serviu tudo aquilo, senão às lembranças? Voltamos então ao asilo, onde o diálogo se encerra. Já conhecemos a história, já pescamos as referências, o ode à lealdade masculina foi feito. Volta o diálogo com Coppola (a primeira metade do filme conta com um bar, onde o garçom chama-se Vito, quero rever o filme de novo para anotar quantas vezes é dito “Obrigado Vito”), no fim do filme de 1972 quando Michael se torna o chefe da família, a câmera retira Kay (Diane Keaton) de cena com um fechar de porta. São outros tempos, hoje os homens ainda detêm o poder. Mas alguns estão conscientes disso. Scorsese então deixa a sua porta entreaberta. Frank diz preferir assim. É o único espaço de julgamento que nos é permitido. Quando o filme acaba.

Ficha técnica

O irlandês (The Irishman, 2019)
Direção: Martin Scorsese
Elenco: Robert De Niro, Al Pacino, Joe Pesci, Anna Paquim
Duração: 210 minutos

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.