Capitão América: Admirável Mundo Novo | Crítica
Bastam os primeiros minutos de “Capitão América: Admirável Mundo Novo” para perceber que este filme se tornou um divisor de águas na história da Marvel Studios e do cinema de super-heróis. Mas não pelas melhores razões.
Durante a produção, boatos intensos circularam em jornais e na internet sobre os problemas enfrentados pelo longa. Desde refilmagens extensas até uma mudança de direção nos projetos da Disney, o filme passou por um período turbulento. Some-se a isso o impacto da Fase 4 da Marvel, que não atingiu o mesmo sucesso de fases anteriores, e fica evidente que esta produção tinha um grande fardo: ajudar a reerguer o estúdio. Desafio que parece ter sido compreendido pelo diretor Julius Onah e pelo protagonista Anthony Mackie.
A escolha de Ross como uma figura inspirada em políticos reais gerou controvérsia. E a presença de uma personagem israelense como uma das principais coadjuvantes se tornou ainda mais complexa diante do cenário geopolítico atual. A solução parece ter sido remover parte da carga política da trama. Me parece, sinceramente, ter sido o caminho escolhido por Kevin Feige. Mas felizmente não o caminho escolhido pela direção.
Um filme clássico da Marvel? Nem tanto.
A primeira impressão que se tem deste filme é a de um retorno seguro à fórmula Marvel. Mas reduzir a obra a isso seria um erro. A construção do herói aqui, ao contrário das críticas que certamente surgirão, é nova e admirável. No entanto, essa evolução acontece à revelia da Marvel Studios. Se Kevin Feige e os acionistas esperavam algo mais leve e próximo de Soldado Invernal, Onah entrega um sucessor temático de Pantera Negra.
A comparação não se dá apenas na representatividade visual – que, por vezes, pode flertar com estereótipos –, mas também na abordagem dos temas centrais. Em dado momento um personagem diz a Wilson, “Steve deu às pessoas algo em que acreditar, mas você as inspira”. Em outro momento, mais a frente, o próprio Sam diz o quanto ser essa inspiração é exaustiva.
O filme procura evitar problemas com possíveis leituras do seu vilão como se ele fosse Donald Trump – e algumas mudanças são tão óbvias e mergulham na pieguice, mas o filme não se priva de falar sobre o tema do soro do super soldado. Nos últimos meses, grupos radicais e de supremacia branca ligados a subgrupos nerds passaram a usar a expressão “capitão américa sem soro” como um apito de cachorro, indicando um neologismo supremacista branco. No filme, antes de enfrentar o Hulk Vermelho, Sam diz, entre os dentes que deveria ter sim tomado o soro.
Não fosse o diretor e o protagonista tão capazes de me expressar seu senso estético e artístico eu acharia que era coincidência, mas o que temos aqui é uma discussão bem colocada sobre a realidade.
Um herói que precisa ser impecável
A força do filme está em sua reflexão sobre privilégios e responsabilidades. Sam Wilson sabe que não pode errar, que precisa se manter impecável de uma maneira que Steve Rogers nunca precisou. A metáfora é poderosa: enfrentar um gigante vermelhinho ou enfrentar os desafios impostos pela sociedade dá no mesmo. A luta nunca é justa, mas ele persiste. Quem não gostaria de ter o soro em um momento antes da morte? Quem não gostaria de ter os privilégios que criaram os monstros em primeiro lugar? Nas entrelinhas, tanto quanto pode, o filme comenta essa romantização. E após seu lançamento, tenho certeza que ganhará dimensões metalinguísticas. Colocando em termos muito diretos, “Capitão América: Admirável Mundo Novo” não é pior do que outros filmes queridos do estúdio – Guerra Civil e GdG2 me vem na memória nesse momento -, mas receberá a cobrança de ser um novo Soldado Invernal ou Ultimato. O fardo segue pesado.
O filme opera no limite do possível, nunca sendo revolucionário, mas trazendo aquilo que pode para o primeiro plano na tela. O esforço hercúleo está na tela e atrás dela. E no fim, Capitão América: Admirável Mundo Novo é um filme que, apesar de suas turbulências, entrega uma narrativa relevante e instigante. E, de um jeito torto – e até cínico –, tenta salvar o Universo Cinematográfico Marvel.
O jogo está contra ele, mas eu torço para que Sam Wilson consiga vencer essa batalha.