Resenha: A Donzela e a Rainha, de Nancy Goldstone
Nome do Livro: A Donzela e a Rainha – A história secreta de Joana d’Arc
Nome Original: The Maid and the Queen
Autor: Nancy Goldstone
Tradução: Gilson César Cardoso de Souza
Editora: Seoman
ISBN: 9788598903699
Páginas: 312
Ano: 2014
Nota: 4/5
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A Donzela e A Rainha – Esta biografia histórica explora o vínculo misterioso e secreto entre a mundana e poderosa Iolanda de Aragão, rainha da Sicília, e a mística Joana d’Arc. Envolvida na complicada batalha dinástica da Guerra dos Cem Anos, Iolanda defendeu a causa do delfim contra as forças da Inglaterra e da Borgonha, valendo-se de sua inteligência, diplomacia e vasta rede de espiões. Mas o inimigo parecia invencível. E justamente quando as esperanças da França se esvaíam, Joana d’Arc surgiu dos confins do reino dizendo-se portadora de uma mensagem divina – mensagem que mudaria o curso da história, levando por fim à coroação de Carlos VII e ao triunfo da França.
Seis séculos depois, como é que o nome de Joana d’Arc é reconhecido por todo o mundo como uma heroína francesa, quando seus eminentes contemporâneos ficam esquecidos nos livros de história? Em A Donzela e a Rainha, Nancy Goldstone mergulha fundo na biografia de uma personagem intrigante e lendária da história mundial. A Rainha do título é Iolanda de Aragão, Rainha da Sicília, a peça fundamental que arquitetou todo o contexto que levou Joana até a corte de Carlos VII e também impediu que seus feitos fossem esquecidos.
Para Goldstone, a história que levou o mito de Joana d’Arc à imortalidade começou décadas antes de seu nascimento, com Iolanda de Aragão, mulher sistematicamente suprimida pelos historiadores apesar de amplas evidências em correspondências e documentos oficiais de que ela foi uma das monarcas mais importantes de sua época, uma mulher forte que dominou várias gerações de nobres de todas as estirpes. Iolanda sempre preferia a diplomacia à guerra aberta e ao assassinato, ferramentas frequentemente usadas pelos homens que deixavam de seguir seus conselhos, geralmente com resultados devastadores que a própria Iolanda tinha que remediar.
A autora ainda traça outra forte conexão entre Joana e Iolanda: uma novela clássica popular na época, o Romance de Melusina, escrito por João de Arras em 1387 (curiosamente, este também é um dos primeiros livros que Gutenberg produziu com sua prensa, em 1478). As similaridades entre o desenvolvimento da história da França durante a vida de Joana e o andamento da narrativa de Melusina são citadas ao longo do livro. A universalidade das figuras de linguagem ajudam nessas comparações, mas a grande quantidade de coincidências envolvendo a obra é incrível.
Encontrei diversas semelhanças com uma obra de ficção contemporânea: “As Crônicas de Gelo e Fogo”, de George R. R. Martin (que deu origem à série de TV Game of Thrones), com as reviravoltas inesperadas, os boatos de quebra de linhagem, a perseguição por motivos religiosos, as traições e alianças temporárias contra inimigos em comum. Tanto a história quando a ficção se cruzam e é muito fácil encontrar as origens e inspirações dos autores contemporâneos. Posso dizer que frequentemente o que consta nos livros de história é mais assombroso que a ficção.
Mesmo que muito interessante, boa parte deste livro é a simples enumeração de fatos, manobras, datas e lugares, tudo amplamente amparado por documentos e teses de medievalistas. Um trabalho minucioso e complexo, como montar um quebra-cabeças de seiscentos anos com peças faltando, tortas ou obscurecidas.
Não se aventure procurando uma história de cavalaria, com príncipes nobres e donzelas indefesas. “A Donzela e a Rainha” é a história da estupidez humana concentrada em pessoas egocêntricas, com sérios problemas mentais, que fizeram seu país e seu povo sofrer ao longo de décadas em guerras inúteis, deixando a árdua tarefa de salvar a França nas mãos de uma camponesa, o que só foi possível graças a argúcia de Iolanda de Aragão. Os nobres e monarcas da época tinham em mente obter o máximo de lucro, terras, títulos e favores em seu tempo de vida para marcar o nome na genealogia da família. Faziam isso através de golpes, traições, assassinatos ou subterfúgios mascarados de legitimidade (que podia ser comprada facilmente), o que leva a crer que na política pouca coisa mudou até hoje.
A imensa complexidade e variedade de eventos que permitiram a construção do mito de Joana d’Arc são apresentados aos poucos, em linguagem fácil de acompanhar e mostrando as interligações e consequências futuras, tornando a leitura agradável e preparando o leitor aos poucos para compreender um pouco melhor como era a Europa no século XV.
Nascida aproximadamente em 1412 (três anos antes da famosa batalha de Azincourt), na distante província de Domrémy, Joana d’Arc foi testemunha direta da guerra civil que dividia os franceses enquanto os ingleses dominavam o norte do reino e invadiam novos territórios a cada ano a partir da Normandia. Cristã devota, assistia a missa com regularidade, se confessava e recebia os sacramentos. Começou a ouvir vozes na adolescência, que lhe diziam que sua missão era salvar a França e auxiliar o rei. Na época, uma profecia popular que circulava pela França dizia que uma donzela surgiria para salvar o reino, mas muitas mulheres alegavam ser essa virgem salvadora.
Em 1428, a cidade murada de Orléans foi sitiada pelas forças inglesas. Carlos VII hesitava em sacrificar mais soldados depois de diversas campanhas desastrosas. Perder Orléans seria um duro golpe para a França, a cidade era um importante ponto estratégico e Paris já havia sido tomada por tropas inglesas em 1418.
O sítio a Orléans já durava seis meses quando Joana finalmente conseguiu se aproximar de Carlos VII e expor sua missão: que ele fosse reconhecido como legítimo herdeiro do trono da França e ela salvaria o reino da invasão inglesa, começando pelo cerco a Orléans. Com ajuda de Iolanda de Aragão, Joana milagrosamente o convence a lhe entregar soldados e recursos para salvar a cidade de Orléans.
O comando das tropas foi entregue a uma menina de 17 anos, vestindo roupas masculinas, analfabeta e sem experiência militar. A companhia liderada por Joana ganhou status de missão divina, levantando a moral dos homens com a perspectiva de que, desta vez, Deus estaria do lado da França. Chegando a Orléans, as vozes que Joana ouvia sempre a mandavam fazer algo diferente do que os experientes soldados recomendavam. Com obstinação, ela foi para a linha de frente e, mesmo ferida, levou seus homens a vitória em pouco tempo. Esse foi o início da virada da guerra, que culminaria na total retomada do território francês.
Depois destas conquistas impressionantes, impaciente com os rumos da guerra, Joana, que já não ouvia as vozes, voltou sozinha ao campo de batalha e tentou retomar Paris, sem sucesso, para ser finalmente derrotada e capturada em Copiègne. Foi então “vendida” aos ingleses, que queriam julgá-la como feiticeira. Na verdade, o julgamento foi uma grande armação, já que o objetivo dos ingleses era unicamente torturar e humilhar a famosa heroína francesa antes de finalmente executá-la da forma mais dolorosa possível.
Ao descrever o julgamento de Joana, percebi que a autora se deixa levar pela emoção. Nesse capítulo ela está pessoalmente ofendida, torna-se indignada, repleta de sarcasmo ao apontar as contradições e as motivações econômicas dos clérigos que condenaram Joana através de manobras e subterfúgios, depois de ter falhado em induzi-la à heresia durante os cinco meses do interrogatório. É um trecho particularmente triste, que expõe o que há de pior no ser humano. Todos os protocolos estabelecidos pela Inquisição foram quebrados para tentar apressar a condenação, mas a fluência verbal de Joana evidenciava uma profunda fé e seus algozes não conseguiram induzi-la ao erro. O julgamento se arrastou por muito mais tempo do que o previsto, foi caro e infrutífero. Por fim, Joana foi simplesmente queimada quando não havia mais como incriminá-la. Depois, foi esquecida por Carlos VII durante mais de vinte anos, até o dia que os registros do julgamento foram encontrados e contestados oficialmente, assim nascendo à lenda de Joana d’Arc, a Donzela que ouvia vozes e salvou a França.
A imagem da capa foi muito bem escolhida, retrata Joana d’Arc com um manto vermelho (da mesma maneira que seus contemporâneos a descreviam), sem dar contornos diretos para suas feições e também dando a ideia de que ela está sozinha, o que de fato ocorreu. O livro tem um tamanho confortável, como todos da editora Seoman, a fonte é de bom tamanho e o conjunto deixa a leitura agradável. Não encontrei erros de digitação, o que é um bônus. A grande quantidade de imagens, mapas e vitrais ajudam o leitor a montar o cenário da época.
“A Donzela e a Rainha” está além da literatura, retratando fatos reais até onde podem ser recontados tanto tempo depois. Com tantas incertezas e contradições, Nancy Goldstone soma mais uma grande obra aos inúmeros trabalhos que honram a memória de Joana d’Arc e seu legado.