Artigo | V – Legião Urbana: música, cinema e literatura
V – O disco das referências da Legião Urbana
Por Randlle Brito Rodrigues
O melhor parâmetro que se pode ter para analisar qualquer obra da Legião Urbana, é que Renato Russo era uma enciclopédia pop e erudita. Nerd clássico, daqueles de saber nomes de discos e livros obscuros, procurou inserir em cada disco de sua banda, todo esse repertório de referências.
Mas, a meu ver, onde tal tendência chegou a seu ápice, foi no quinto disco intitulado “V”.
Desde o fato da capa não ter nome, tendo somente o algarismo romano referente ao número cinco (V) sobre um fundo branco, as referências saltam aos olhos.
Pois, como fã de Beatles que era, aquele seria o “álbum branco” da sua banda. Remetendo, em estilo e proposta, ao mesmo sentido que o fab four propôs em seu disco clássico.
E, guardadas as devidas proporções, a não ser pelo fato do disco dos Beatles ser duplo, a audição do “V” da Legião lembra muito o que os Beatles fizeram no “álbum branco”.
O disco tem Prólogo e epílogo, sendo que, como prólogo, o poeta escolheu musicar um poema medieval, o intitulando ironicamente de “Love song” para em seguida explicar entre parênteses: (Cantiga de amor).
O poeta faz um interessante jogo de palavras, entre a essência de um disco de uma banda pop (um encadeamento das chamadas lovesongs), e a temática que permeia o disco, pois que as cantigas de amor junto às cantigas de amigo são a base da literatura moderna. Ademais, os signos da época medieval também estão por toda a parte, como a canção que segue.
Intitulada “Metal contra as nuvens”, a música mescla uma narrativa épica, com direito a dragões e espadas, com uma metáfora sobre os anos Collor. É a música mais parecida com o rock progressivo, tanto que na capa do disco há uma epígrafe dizendo: “Bem vindos aos anos setenta.”
A canção instrumental “A ordem dos templários” continua a trabalhar com os ícones das estórias medievais, tendo em vista que os Cavaleiros Templários são um dos grandes temas dos romances de cavalaria e aventura da época.
“A montanha mágica” se entrega desde o título. O livro que dá nome à canção é uma das obras maiores de Thomas Mann, e retrata a jornada de autoconhecimento de Hans Castorp, um jovem sem rumo e meio doente que vai parar num sanatório isolado nos Alpes suíços, às vésperas da 1ª guerra mundial.
Renato tomou a inspiração do livro, e dali elaborou uma tragédia em três atos, tendo por tema a descrição das etapas da adição às drogas, em seu caso específico a heroína. Desde o fascínio com os efeitos que ela trás, passando pela fissura e desintoxicação, o poeta se vale de um vasto arsenal literário, de metáforas a gradações, para fazer o que ele, sem falsa modéstia, dizia ser a “melhor música sobre o vício em drogas da língua portuguesa.”
“O teatro dos vampiros” serve como crônica da época, posto que o poeta esmiúça hábitos e costumes dos anos 90, relata as dificuldades do período, entremeado por uma declaração de amor. No entanto, como referência adicional e que ajuda e muito a entender um outro subtexto na obra, está o fato que “O teatro dos vampiros” é uma passagem do livro “Entrevista com o vampiro” da Anne Rice, onde, na Paris da Belle Époque, vampiros encenavam uma peça em que faziam o papel de…vampiros! Sem que a platéia soubesse qual a natureza real daqueles atores que, ao final de cada encenação, tratavam de jantar seu público.
“Sereníssima” era o apelido da Veneza Renascentista, a cidade dos canais e do carnaval das máscaras. Interessante referência, na medida em que, é a canção confessional do disco, toda em primeira pessoa, onde o eu lírico relata fragilidades e defeitos ao ser amado.
A canção triste do disco é “Vento no litoral”. Não há muito a se dizer sobre uma canção perfeita, apenas que, nos versos finais, ao aparentemente só descrever que vê cavalos marinhos, o poeta descreve a sua “gestação” do filho Giuliano. Pois o cavalo marinho é uma espécie única, como se pode observar deste trecho da Wikipédia:
A reprodução se inicia quando os ovos da espécie são transferidos da bolsa incubadora da fêmea para a do macho, no momento do acasalamento. Os ovos, já na bolsa incubadora do macho, que se localiza na base de sua cauda, são fertilizados por esperma que o próprio macho libera lá dentro. Dois meses mais tarde, os ovos se eclodem e o macho realiza violentas contorções para expelir os filhotes, que estão dentro da bolsa incubadora dele.
Chegamos à canção pop do disco, eis uma “Love song”. “O mundo anda tão complicado” é uma descrição bucólica e otimista sobre o início de uma vida a dois. Um belo retrato de um casal num dia de sol, com os móveis ao fundo pela calçada, à espera de quem os ponha no lugar.
Mas, como não podia deixar de ser, as referências retornam, e agora com muita força. O título da música é “L’Age d’or”, que também é o nome do segundo filme do Buñuel, que tem o seguinte tema, de acordo com a análise a seguir:
“L’Age D’Or” foi o segundo filme francês, fruto da colaboração de Luis Buñuel e Salvador Dalí. Foi a primeira longa-metragem da carreira de Buñuel, e um dos primeiros filmes sonoros produzidos em França.
https://ajanelaencantada.wordpress.com/2013/04/06/lage-dor-1930/
Sucedendo a “Um Cão Andaluz” (Un Chien Andalou, 1929), “L’Age D’Or” é um filme mais longo, com uma narrativa mais clara, mas ainda assim, como o filme anterior, é também uma obra surrealista pura, plena de técnicas narrativas pouco convencionais, ligações fantásticas, radicais ou aparentemente irracionais.
Ainda assim, se em “Um Cão Andaluz”, a premissa era filmar apenas imagens retiradas de sonhos, sem explicação racional, em “L’Age D’Or” é perceptível um tema, que percorre a maior parte do filme. O tema é a sátira da sociedade burguesa, ilustrada pela repressão do desejo sexual (tema caro aos surrealistas) e obstáculos morais convencionais à sua consumação.
Após um prólogo enigmático sobre escorpiões, a história centra-se num casal que em diversos momentos procura a união carnal, sempre interrompida, e censurada.
Ao mesmo tempo, é uma canção Dylanesca, em específico da fase “Blood on the tracks”. Parece “Idiot Wind”, “Tangle up in blue”, “Simple twist is fate”, “If you see her, say hello” (cantada por Renato em seu disco solo “The Stonewall Celebration Concert”).
Mas também é uma canção mística, cheia dos esoterismos que o poeta tanto prezava. Num dos versos inclusive, ele menciona: Qual é o teu nome, qual é teu signo?/ Teu corpo é gostoso e teu rosto é bonito/ Qual é o teu arcano, tua pedra preciosa? Acho importante acreditarmos nisto.
E para finalizar com um epílogo singelo, após a intensidade de “L’Age d’or”, temos a canção folclórica americana “Come share my life”.Quase uma cantiga de ninar. Mas, não seriam as cantigas de ninar, uma outra maneira de dizer cantigas de amor?
Quem sabe esta seria uma das intenções do poeta.
Ouça aqui o álbum “Legião Urbana – V”
Randlle Brito Rodrigues é advogado por formação, poeta por opção e sonhador de coração