Na mira dos lançamentos: Companhia das Letras (junho/2016)
Confiram os lançamentos do mês da Companhia das Letras:
Pureza, de Jonathan Franzen
A jovem Pip Tyler não sabe quem é. Ela sabe que seu nome verdadeiro é Purity, que está atolada em dívidas, que está dividindo um apartamento com anarquistas e que a sua relação com a mãe vai de mal a pior. Coisas que ela não sabe: quem é seu pai, por que a mãe a força a uma vida reclusa, por que tem um nome inventado e como ela vai fazer para levar uma vida normal. Um breve encontro com um ativista alemão leva Pip à América do Sul para um estágio numa organização que contrabandeia segredos do mundo inteiro – inclusive sobre sua misteriosa origem. Pureza é uma história sobre idealismo juvenil, lealdade e assassinato. O mais ousado e profundo trabalho de um dos grandes romancistas de nosso tempo.
O REI, O PAI E A MORTE – A religião vodum na antiga Costa dos Escravos na África Ocidental, de Luis Nicolau Parés
Este livro examina as práticas religiosas na antiga Costa dos Escravos, na África Ocidental, correspondente à extensão onde hoje está a República do Benim. Nesse pequeno trecho de litoral, embarcou-se parte significativa dos africanos que chegaram escravizados ao Brasil, em particular à Bahia. A obra privilegia os dois séculos que vão de 1650 a 1850, quando o tráfico transatlântico de escravos foi mais intenso.
Os principais reinos que dominaram a região nessa época foram Aladá, depois Uidá, e a partir da década de 1720, Daomé. Em razão das várias línguas faladas nessas sociedades, os deuses eram chamados de diversas formas, mas o termo mais comum era, e ainda é, vodum. Assim, o livro analisa o dinamismo e a historicidade da prática associada aos voduns, destacando sua imbricação com a vida política e econômica desses reinos. Em função da ligação histórica do Brasil com o lugar, a última parte da obra aborda questões relativas às repercussões que esses costumes tiveram na Bahia e no Maranhão.
As formas de religiosidade desenvolvidas no período do tráfico de escravos constituíram um dos principais motores para a recriação dos rituais afro-atlânticos. No entanto, além de um simples movimento unidirecional da África para o Brasil, as forças da economia do tráfico afetaram de forma dramática as práticas religiosas em ambos os lados do Atlântico. O sistema escravagista, marcado por assimetrias de poder extremas, violência, racialização, instabilidade social e migrações generalizadas, intensificou uma forma ritualística baseada na troca sacrificial, na hierarquização, na possessão e no imaginário da feitiçaria.
Inextricavelmente ligados à prática política e econômica dessas sociedades, os rituais religiosos desses povos são uma tradição de pluralismo e tolerância que precisa ser
valorizada, sobretudo em tempos sombrios como os atuais, tomados por intransigência e fundamentalismo.
Minhas duas meninas, de Teté Ribeiro
Uma história comovente sobre os desafios e o desejo de ser mãe. Um belo retrato sobre ser mulher no mundo contemporâneo
Após quase uma década lutando contra a infertilidade, a jornalista Teté Ribeiro tomou uma decisão ousada: ter filhos por meio de uma barriga de aluguel na Índia. Minhas duas meninas é o relato de seu périplo até essa decisão — e dos detalhes que marcaram a sua experiência.
A relação com a mãe indiana, o dia a dia logo após o nascimento das gêmeas, as particularidades da clínica e os dilemas de ser mãe sem passar pela experiência de dar à luz são alguns dos pontos presentes neste relato comovente.
Em parte livro de memórias, em parte retrato de geração, mas também reportagem exemplar, Minhas duas meninas é uma radiografia dos dilemas da mulher contemporânea.
O DONO DO MORRO – Um homem e a batalha pelo Rio, de Misha Glenny
A vida de uma cidade é a história de sua gente – de seus intelectuais e comerciantes, de seus trabalhadores, policiais e bandidos. A menos que estes últimos estejam mortos, para o repórter será sempre mais conveniente tratar dos outros. No entanto, em certas sociedades o bandido tem grande força simbólica, e dar as costas a ele é abrir mão do bom trabalho jornalístico.
O Dono do Morro toma o caminho difícil ao contar a história de Nem da Rocinha, que está tão vivo quanto o leitor. Em novembro de 2011, ao ser preso, Nem era o criminoso mais procurado do Rio de Janeiro, se não do país. Misha Glenny vai encontrá-lo na prisão, e o que se segue é tanto a ascensão e queda de um traficante como a tragédia de uma cidade.
Numa tarde de 2000, Antônio Francisco Bonfim Lopes “subiu o morro como Antônio e desceu como Nem”. Em minutos, passou de trabalhador exemplar a bandido. O Rio é pródigo em episódios de conversão ao crime, mas raras vezes eles se apresentam com essa clareza trágica – com motivação, hora e local perfeitamente determinados.
Vários são os personagens deste livro, como Dudu, Lulu e Bem-Te-Vi, senhores efêmeros da vida e da morte, cuja notoriedade será aferida pelo fato de que, por uns meses – não mais de dez, tempo correspondente à expectativa de vida dos chefes da Rocinha -, bastava pronunciar as poucas sílabas de seus apelidos para que qualquer carioca soubesse de quem se tratava.
Para a maioria deles o crime terá sido um ato de consciência pelo qual terão de ser responsabilizados. Diante das cartas que lhes foram dadas, mesmo aqueles que, a exemplo de Nem, não são monstros patológicos, preferiram o fuzil à carteira de trabalho, reafirmando a observação de Darcy Ribeiro: o Brasil é uma máquina de moer
gente. Da inundação do Rio pela cocaína nos anos 1980 ao atual nó que ata voto, armas, política, polícia e bandidagem, a apuração impecável de Misha Glenny nos revela cada peça dessa moenda.
O INSTANTE CERTO, de Dorrit Harazim
A fotografia mudou o mundo. Há cliques que alteraram o rumo da história, os costumes da sociedade, os hábitos privados e coletivos. Neste O instante certo, a premiada jornalista Dorrit Harazim conta a história e as histórias de alguns dos mais célebres fotogramas já tirados. Com o olhar menos interessado em aspectos técnicos do que em aspectos humanos, Dorrit enxerga para além de jogos de luzes e sombras, mirando sempre nas narrativas que as fotografias por vezes revelam e por vezes ocultam.
Assim, registros da Guerra Civil Americana propiciam uma rica análise dos avanços tecnológicos da fotografia e de como eles mudaram a reportagem de guerra. Uma fotografia na cidade de Selma é um relato da trajetória do movimento pelos direitos civis, e uma série de retratos de um casamento inter-racial serve para alterar a visão de uma nação sobre seu próprio racismo. No Brasil, uma mudança na lei trabalhista tem como fruto um dos mais profícuos retratistas do país, e o acaso e a sorte levam outro talentoso fotógrafo ao sucesso internacional.
Num dos momentos mais emocionantes do livro, Dorrit conta a história do fotógrafo que registrou os pertences de dezenas de internos de uma instituição psiquiátrica desativada. São malas, bolsas e inúmeros cacarecos, um labirinto pessoal e afetivo de gente que foi esquecida e abandonada pelo tempo, e cujas memórias são resgatadas por essas imagens. Da mesma forma, Dorrit narra a vida da misteriosa Vivian Maier, uma babá de vida pessoal discreta que, após a morte, foi revelada como uma grande fotógrafa e retratou como poucos a sua cidade e a sua sociedade.
Neste que é seu primeiro livro, Dorrit Harazim nos guia não apenas através das imagens, mas de um universo de histórias interligadas, acasos e aqueles breves instantes de genialidade que só a fotografia pode captar.
PÉ DO OUVIDO, de Alice Sant’Anna
Pé do ouvido se inventa como um poema de formação, gênero que, como se sabe, não existe. Nos romances assim designados, uma personagem jovem parte em viagem e, a cada experiência vivida, forja, por acumulação, sua personalidade e visão de mundo. A narradora de Alice Sant’Anna certamente é jovem, mas já rodou muitas estradas. Entre uma Brook Street qualquer e o Morro Dois Irmãos, o que ela aprende é a perder – certezas, casas ou amores -, aluna aplicada na dura disciplina ensinada por Elizabeth Bishop.
Em duas partes assimétricas, no longo monólogo da viagem e no breve recado da volta, ela depura a dúvida. É tão impossível fotografar a lua com o celular quanto apreender a vida na linguagem. Tradutora obsessiva, que a todo momento recorre à poesia japonesa para certificar-se de seus limites, ela confronta palavras (“a diferença entre solitude/ e loneliness qual é?”) e a própria expressão (“se tivesse nascido/ em outro país a voz seria outra/ e as coisas que escreve e pensa/ também seriam outras”). O poema está no que se perde, na tradução e na vida. No que a narradora não chega a compreender inteiramente de uma cultura ou na impermanência fatal de um amor. “o momento em que você percebe/ que está vivendo um momento/ por algum motivo/ um momento mais importante/ que os outros” traduz o instante decisivo de seu périplo banal. Reinstalada num quarto todo seu, a poeta que já viu materializar-se no tédio da casa um portentoso rabo de baleia agora adverte: “do outro lado da porta mora um leão/ é preciso aprender/ a abrir a porta do quarto/ com toda a delicadeza para que o leão/ não acorde”.
É nessa delicadeza tensa que Alice afina a sua voz. Ao pé do ouvido, como se sabe, fala-se baixo. Falar assim é conquistar um interlocutor exclusivo e atento: ouvido à altura da boca, rendido por desejo, curiosidade ou apreensão. É cena de intimidade, mas pode ser de ameaça. Drama ambíguo, como o da fera adormecida no cômodo ao lado.
Uma temporada no escuro (Minha luta, vol. 4), de Karl Ove Knausgård
No quarto volume da série de ficção autobiográfica Minha Luta, Karl Ove Knausgård narra o
inverno que passou perto do Círculo Polar Ártico, investindo na escrita e na perda da virgindade.
Karl Ove Knausgård está com dezoito anos quando parte para uma vila no norte da Noruega a fim de dar aulas a adolescentes. Sua intenção é juntar algum dinheiro para viajar e investir na incipiente atividade de escritor. No começo tudo corre bem, mas quando o escuro toma conta dos dias de inverno, a vida começa a se complicar. A escrita de Karl Ove para de fluir, e suas empreitadas para perder a virgindade fracassam.
Com o alto consumo de álcool ele se aproxima da sombra do pai alcóolatra e resgata a temática do primeiro livro da série Minha Luta, A morte do pai. Como a narrativa não segue ordem cronológica, este volume — um dos mais arrebatadores — pode ser lido de forma independente.
Volume 1 – A morte do pai:
http://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=13974
Volume 2 – Um outro amor:
http://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=13089
Volume 3 – A ilha da infância:
http://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=13618
A guerra não tem rosto de mulher, de Svetlana Aleksiévitch
Uma história ainda pouco conhecida, contada pelas próprias personagens: as incríveis aventuras das soldadas soviéticas que lutaram durante a Segunda Guerra Mundial.
A história das guerras costuma ser contada sob o ponto de vista masculino: soldados e generais, algozes e libertadores. Trata-se, porém, de um equívoco e de uma injustiça. Se em muitos conflitos as mulheres ficaram na retaguarda, em outros estiveram na linha de frente.
É esse capítulo de bravura feminina que Svetlana Aleksiévitch reconstrói neste livro absolutamente apaixonante e forte. Quase um milhão de mulheres lutaram no Exército Vermelho durante a Segunda Guerra Mundial, mas a sua história nunca foi contada. Svetlana Alexiévitch deixa que as vozes dessas mulheres ressoem de forma angustiante e arrebatadora, em memórias que evocam frio, fome, violência sexual e a sombra onipresente da morte.
A BÍBLIA DO CHE, de Miguel Sanches Neto
Herói do romance A primeira mulher, o professor Carlos Eduardo viveu a última década em reclusão total. Morando no centro comercial de Curitiba, o professor quer distância das mulheres e dos criminosos que marcaram sua última aventura, e passa os dias entre o consultório abandonado de odontologia onde vive e uns poucos restaurantes nas redondezas. Sua paz é interrompida pela visita de um velho conhecido, um operador financeiro que quer contratá-lo para uma missão insólita: localizar um exemplar da Bíblia com anotações que Che Guevara teria feito durante uma passagem pelo Brasil. A história conta que, numa temporada clandestina em Curitiba, Che teria se disfarçado de padre e carregado uma Bíblia, em cujas margens fez supostos comentários.
Para além da incerteza que ronda a jornada do revolucionário pelo país, a tarefa tem um complicador, justamente na forma de uma dama fatal, a esposa do operador que o contratou. Peça-chave no mistério da Bíblia do Che, Celina enlaça o professor ainda mais na teia de intrigas que circunda o livro. Em pouco tempo, o operador aparece morto e a investigação de Carlos Eduardo, que antes pertencia ao âmbito dos colecionadores de livros raros, evolui para uma rede de crimes que envolve governo, construtoras, dinheiro sujo de campanha e caixa dois.
A busca colocará o professor no centro de um furacão político que assola o país. Entre empreiteiros corruptos, políticos escusos e paixões desmedidas – que ele não pôde evitar -, Carlos Eduardo precisa percorrer um labirinto de mentiras e intrigas que pode significar a sua própria morte. Um dos grandes romancistas brasileiros em atividade, Miguel Sanches Neto faz do suspense e do mistério terreno fértil para uma reflexão sobre vida, morte, poder e arte.
IRACEMA – Lenda do Ceará, de José de Alencar
Publicado em 1865, Iracema é um dos textos fundamentais da cultura brasileira. Parte da trilogia indianista de José de Alencar (O guarani e Ubirajara são os outros livros), o romance guarda a multiplicidade dos clássicos: sua prosa é poética, seu tratamento da matéria é mítico, seu ar é de epopeia.
Livro que durante muitos anos resumiu o éthos brasileiro nas letras, ainda hoje oferece muitos caminhos de interpretação na crítica literária, na historiografia, nos estudos culturais e de gênero. A história do amor de Iracema, a “virgem dos lábios de mel”, com Martim é a metáfora romântica do encontro entre a civilização e a cultura autóctone. Valorizando a paisagem brasileira e construindo um passado idealizado, José de Alencar criou um mito que perdura até hoje.