Resenhas

Resenha: As lágrimas de Shiva, por César Mallorquí

shiva-siteTítulo: As lágrimas de Shiva
Título Original: Las lágrimas de Shiva
Tradutora: Socorro Acioli
Autora: César Mallorquí
Páginas: 200
Ano: 2010
Editora: Biruta
Avaliação: 5/5
Onde Comprar: Compare

Em certa ocasião, faz muito, muito tempo, eu vi um fantasma. Isto mesmo: um fantasma, uma aparição, um espírito; pode chamar como quiser, o caso é que o vi. O fato ocorreu no mesmo ano em que o homem chegava à Lua. Houve momentos em que tive muito medo, como se estivesse vivendo numa novela de terror. Tudo começou com um mistério: o desaparecimento de um objeto muito valioso, perdido durante sete décadas. As Lágrimas de Shiva, assim se chamava o objeto extraviado. Vinganças, amores proibidos e estranhas desaparições, tudo envolvia o misterioso objeto. Havia um fantasma, afirmo, e um segredo muito antigo oculto nas sombras, mas aconteceu bem mais do que poderia imaginar.

Não conheço muito da literatura espanhola contemporânea. Ao ver a nacionalidade de César Mallorquí fui pesquisar outros autores do país e vi que não conhecia, nem havia lido, nenhum deles. Nas primeiras páginas de As lágrimas de Shiva parte desse enigma é desvendado: após a segunda guerra mundial, quando diversos países europeus e americanos começaram uma cruzada pela literatura e pela recuperação moral e financeira, a Espanha sofreu um golpe militar e ficou sob regime ditatorial até 1975 (de certa forma, semelhante ao Brasil). Não é surpresa que o autor, nascido em 1953, ambiente essa fantástica história em 1969, com um adolescente de quinze anos. Para completar o cenário geral, a trama se passa na época da chegada do homem à Lua (seja esse pouso verdade ou não). Assim, temos a interessante perspectiva do jovem Javier assistindo pela TV o evento que mudou significativamente a história mundial contemporânea enquanto vive em um país estagnado.

O mundo mudava no verão de 1969, aos quinze anos e morando em Madrid, Javier precisa sair de casa para dar lugar ao pai, que se recupera de uma tuberculose. Javier é mandado a Santander para passar as férias com a irmã de sua mãe, Adela, o marido Luis Obregón e as quatro filhas do casal. Pouco acostumado a conviver com mulheres, Javier parte para uma jornada de descobertas munido apenas com algumas novelas de ficção científica.

Nas primeiras páginas Javier já adianta alguns dos problemas que enfrentou naquele verão: como conheceu um fantasma, a doença de seu pai e o mistério que mudou a vida de várias gerações envolvendo as “lágrimas de Shiva”.

Narrado em primeira pessoa e de forma muito fluida, o texto nunca é tedioso e as trocas de capítulos sempre são bem compassadas no enredo, deixando excelentes ganchos. Javier dá apenas descrições pontuais do que é relevante para que o leitor compreenda a narrativa; nunca é superficial, mas também não se detém em longas divagações. Por exemplo, ao descrever as primas (ocultei alguns trechos para não estragar as surpresas):

 

“Rosa parecia a mais madura das quatro, a mais sensata, mas no fundo devia ser muito romântica. Margarida era puro fogo, desinibida e irreverente […]. Violeta, a primeira vista parecia muito séria e convencida, mas sua forma áspera de ser escondia um caráter sonhador […] E Açucena? Nunca falava, apenas olhava, mas por seus olhos era possível adivinhar uma compreensão e inteligência maiores que os normais para uma menina de doze anos de idade.”

 

As referências literárias são valiosíssimas. Javier, que é leitor ávido de ficção científica, cria animosidade instantânea com sua prima Violeta, que adora “bons livros” e admite que já leu os dois únicos livros de ficção científica relevantes – 1984, de George Orwell, e Um mundo feliz, de Aldous Huxley. Aqui há um pequeno engano: em espanhol o livro Brave New World de Huxley (no Brasil: Admirável mundo novo) se chama “Un mundo feliz”, a tradutora adaptou o título na versão original ao pé da letra, quando poderia ter usado a versão brasileira. Algumas outras citações incluem Isaac Asimov, Arthur C. Clarke, Robert Heilein, Joseph Conrad, Jane Austen. E por título: Frankenstein ou o Prometeu Moderno, de Mary Shelley e Malmoth, de Charles Maturin. Para o leitor jovem que busca novidades, todas as citações estão agrupadas por gênero: ficção científica, clássicos modernos, góticos, aventura.

Depois que Violeta lhe dá um exemplar de O apanhador no campo de centeio, de J.D. Salinger, Javier contra-ataca dando a ela um volume de As crônicas marcianas, de Ray Bradbury. Recebe então O velho e o mar, de Hemingway. Assim eles percebem que os livros que mais gostam abordam os mesmos temas, mas por perspectivas diferentes. Certamente há maneiras piores de passar um verão, com ou sem fantasmas.

Ainda nas primeiras páginas há um trecho muito interessante: Javier está ouvindo uma novela de José Mallorquí no rádio e cita que ele é um dos escritores mais famosos da Espanha. Pela infalível Wikipedia descobri que José é pai de César Mallorquí. Como não há referências sobre a influência de José na época, é de minha opinião que essa é a visão que o autor tinha do pai, e pode não refletir necessariamente a opinião pública. Infelizmente não encontrei fontes confiáveis para embasamento.

Em tão poucas páginas, e com um número grande de personagens, César Mallorquí consegue apresentá-los gradativamente e caracterizar a todos como indivíduos – não há personagens completamente insípidos ou vagos. Parte da temática central é a transformação essencial que Javier enfrenta durante esse difícil período da vida e como todas as pessoas que o rodeavam naquele verão o ajudaram a entender o mundo de outra maneira, cada um contribuindo com suas idiossincrasias.

Senti falta das belas ilustrações que estão na maioria dos livros da Biruta, mas compreendo essa opção em um livro para um público um pouco mais velho. A bela imagem da capa mostra um estreito beco, que infelizmente não reflete as descrições de cenários amplos em Santander, e se vista rapidamente pode levar o leitor a pensar que o livro é ambientado na Índia. No geral, a brochura é de excelente qualidade, páginas brancas e fonte grande. Com poucas páginas, não desanima o leitor mais preguiçoso – e ainda há páginas em branco nas transições de capítulo. Há alguns erros de ortografia simples, que não chegam a comprometer a leitura.

Eu indico a leitura para o começo do verão, principalmente para um leitor jovem. “As lágrimas de Shiva” pode conquistar novos leitores pelo seu ritmo cadenciado. E nós leitores mais experientes podemos nos lembrar de como é ser um adolescente e ter o mundo aberto para infinitas possibilidades e descobertas.

Jairo Canova

Jairo Canova é Administrador e gosta de livros mais do que imagina.

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