Resenha: Nova Gramática Finlandesa, de Diego Marani
Título: Nova Gramática Finlandesa
Título original: Nuova Grammatica Finlandese
Tradutor: Eduardo Brandão
Autor: Diego Marani
Páginas: 184
Ano de publicação: 2014
Editora: Companhia das Letras
Avaliação: 4/5
Onde comprar: Livraria Cultura, Compare
Trieste, 1943. Um homem à beira da morte chega a um navio-hospital alemão atracado no porto da cidade. Com um grave ferimento na cabeça, sem documentos, memória ou capacidades linguísticas, recebe o tratamento de um médico finlandês que se convence, pautado pelos poucos indícios disponíveis, de que está diante de um conterrâneo. Enquanto cuida de sua saúde, o médico lhe ensina a língua finlandesa, confiando que assim o ajudará a redescobrir sua identidade. Os dois são cúmplices nessa jornada de exílio e autoconhecimento, que vai levá-los “de volta” a Helsinki. Publicado na Itália no ano 2000, Nova gramática finlandesa foi aclamado pela crítica como obra-prima e ganhou diversos prêmios, entre eles o prestigioso Cavour. Desde então, foi traduzido para diversas línguas e virou um best-seller na Europa. Marani, que trabalha oficialmente como linguista da União Europeia, parece um nativo ao dar conta das (sabidamente complexas) língua e história finlandesas.
Por certo, no entanto, não se trata de uma apostila de língua ou de história. Remontando às narrativas que povoam o imaginário coletivo, como a de Rômulo e Remo, Mogli e Kaspar Hauser, Nova gramática finlandesa é um romance que mistura elementos de suspense e reflexões poéticas sobre a formação da identidade, a aquisição da linguagem, as guerras e os mitos de fundação de uma nação.
Apenas para explicar o contexto, mas completamente fora do foco da narrativa: admito que meu conhecimento da participação da Finlândia na II Guerra Mundial se resumia a um nome – Simo Haya, o maior atirador de elite de todos os tempos, nascido em 1905 na Finlândia era um fazendeiro que cumpriu apenas 1 ano de serviço militar obrigatório e após a invasão russa em 1939 usou seu rifle de caça para abater… mais de 500 soldados em um prazo de 100 dias, incluindo missões de outros atiradores de elite enviados especificamente para mata-lo. Detalhe: ele não usava luneta para não revelar sua posição. Sobreviveu a uma bala explosiva que lhe arrancou metade do crânio (!) e praticamente sem sequelas só faleceu em 2002.
Ao longo da leitura uma pequena pesquisa história foi necessária para contextualizar: a Finlândia aceitou aliança com a Alemanha não por questões ideológicas, e sim pela iminente ameaça da Rússia, que exigia extensas faixas de território finlandês para montar as operações de contra-ataque a ofensiva alemã. Em 1939, após longas negociações e tensões nas fronteiras os dois países entram em conflito armado. Mais informações. Após o fim da guerra, a Finlândia foi obrigada a conceder parte de seu território para a Rússia, e ficou de fora do plano Marshall de reconstrução da Europa (depois recebeu ajuda americana extra oficialmente para construir uma democracia).
Eu conhecia menos ainda as lendas e mitos locais, que tem forte influência russa na perversão e crueldade das histórias que são contadas para as crianças. Um dos prazeres da leitura foi ter contato com esses mitos que mesmo tendo elementos tão diferentes em cada cultura, ainda é possível encontrar os mesmos pontos em comum para explicar a natureza humana em qualquer parte do mundo.
Agora sim, os detalhes de narrativa: Trieste, Itália, 1943. Um homem é encontrado ferido no porto, levado a um navio alemão e tratado pelo médico finlandês Petri Friari. Na japona que usa está gravado o nome Sampo Karjalainen e um lenço com as iniciais SK em seu bolso, nada mais indica sua identidade. Após um período em coma aquele que acreditam ser Sampo acorda completamente sem memórias, sequer sabe falar. O Dr. Friari, convencido de que se trata de um conterrâneo, ensina a Sampo a língua finlandesa e por fim o envia a Helsinque, já que Sampo é um caso interessante para a neurociência. Entretanto, a Finlândia mergulhada na guerra não tem como ajudar o confuso Sampo, que pouco compreende do idioma, costumes ou cultura que para ele é completamente exótica.
“Não entendo tudo, mas entendo. E se não entendo, invento por conta própria o que quero entender.”
Narrado pelo diário de Sampo, com notas em itálico do Dr. Friari que encontrou as anotações, desde o início as notas do doutor revelam arrependimento por suas atitudes precipitadas. Acompanhamos a dolorosa jornada de Sampo na Finlândia dilacerada pela guerra, enquanto tenta descobrir quem era, resgatar seu passado enquanto não há perspectivas para o fututo. Entre as pessoas que conhece com seu finlandês recém adquirido a mais interessante é o pastor Koskela, dado a imensos monólogos na sacristia onde as mais profundas reflexões sobre a natureza humana e o papel dos finlandeses na história é narrado despreocupadamente entre doses de koskenkorva.
“Em Finlandês, ‘Bíblia’ se diz Raamattu, isto é, ‘Grammatica’. A vida é um conjunto de regras. Fora da regra, é o erro, a incompreensão, a danação.”
Mesmo sem memórias e com imensas dificuldades de compreender a guerra, Sampo encontra diversas pessoas que o intrigam de maneiras diferentes e com quem mantém relações superficiais, já que ele sempre procura se distanciar – com exceção do pastor Koskela, que o desafiava continuamente a melhorar seu domínio do idioma enquanto debatiam mitologia e gramática.
Ao acessar o site da Companhia para copiar a sinopse do livro, vi que refletia a maioria das notas que tomei ao longo da leitura, o que as tornava praticamente inúteis ou absolutamente dentro do objetivo da editora e do autor. Mesmo com o cenário de guerra, a leitura é mais indicada a quem prefere uma leitura intimista. “Nova Gramática Finlandesa” convida o leitor a procurar a própria identidade e refletir sobre quais elementos formam uma personalidade.
Na nota biográfica consta que Diego Marani criou uma nova língua: o Europanto; misturando diversas línguas europeias, nesse idioma não há regras gramaticais. Pior: ele escreve uma coluna semanal de variedades em um jornal suíço… em europanto. Esperar que “Nova Gramática Finlandesa” seja uma leitura fácil é um insulto ao autor, mas por ser sucinto não há dificuldade em chegar na última página. A leitura é recompensadora e emocionante, mesmo que irregular em alguns pontos.
A edição da Companhia das Letras tem capa levemente emborrachada (que alguns odeiam, eu adoro), páginas amareladas de excelente qualidade e revisão primorosa do texto. As muitas palavras estrangeiras, em finlandês principalmente, foram mantidas no original e em itálico, um ponto a favor – não suporto quando os tradutores forçam os equivalentes nacionais em obras estrangeiras.
Sucesso de vendas na Europa, o livro tem qualidades de sobra para merecer atenção e um espaço na estante.