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Baseado em Fatos Reais: o conflito entre o criador e a musa

As respeitadas musas da antiguidade, respeitadas por provocarem a inspiração dos artistas e cientistas, é resignificada em “Baseado em Fatos Reais”, novo thriller do diretor Roman Polanski. No filme, a escritora Delphine (Emmanuelle Seigner) se envolve com a jovem Elle (Eva Green). Em meio a fragilidade emocional, provocada pelo lançamento de seu último livro, Delphine se depara com uma fã. Ela é Elle – como em Elisabeth -, um escritora fantasma, que admira a obra da escritora. Sorrateiramente, a moça andentra na vida da escritora e a relação entre as duas se torna intima e intimista.

Possuindo um roteiro mais simples que os de seus outros filmes  – escrito pro Polanski e Assayas, diretor de “Personal Shopper“-, aqui o uso da mescla de personas é o que demarca o clima de horror e suspense.

Desde o momento que as duas se encontram é perceptível, em suas ações, que há uma instabilidade no campo de força – inaginario – que as circula. Uma tem o poder de abalar a outra. Mas, ao mesmo tempo há uma forte atração que as direciona uma a outra .

Delphine, desprovida de forças intelectuais e poderosas está sempre envolta em uma atmosfera acinzentada. Elle, está sempre aparentando  uma misteriosa, demarcada por suas roupas pretas, somadas a uma sedução perigosa, destacada pelo vermelho de suas unhas e por seu batom.

A partir do momento que Elle adentra a casa de Delphine, a interação artista-musa pode ser confirmada, pois os elementos citados acima passam a compor a vestimenta das duas. O comportamento delas, também se ajusta a condição simbiótica. Elas deixa de ser partes e se tornam unidades.

Ouvi uma vez, de um professor, parafraseando algum artista que “fazer arte é entrar em promiscuidade com seus próprios demonios”. Durante a sessão do filme, me peguei pensando nisso em diversos momentos. A cada tentativa de retomada do poder, ora de uma, ora de outra; a cada briga e a cada pedido de desculpas, essa dolorosa e esgotante relação com a inspiração, travada pela escritora se evidencia.

Polanski faz escolhas que tentam desviar nosso olhar, para assim provocar dúvidas sobre quem inflige dor em quem. Há uma série de elementos soltos, como o sonho com a mãe, as cartas ofensivas, ou a morte do liquidificador, que demarcam acessos se ira ou de tristeza, mas não nos dão muitas pistas de qual seu propósito ali .

Mas, não seria essa a melhor ideia de manter o suspense, a falta de certezas? Por lidar com uma pessoa em um momento de esgotamento emocional, sendo amada e odiada por seu trabalho nada mais instável que a história vista é contada pelo seu olhar.

Ao percebermos que o filme é uma noção da realidade que a escritora se impõe, não podemos afirmar o que é fato é o que é ilusão. Nessa dicotomia, enxergo o que me atraiu a obra de Polanski, quando em tom de ameaça minha mãe disse que era pra eu ver um filme de terror de verdade. Ela estava achando que Cine Trash era uma bobagem e me apresentou a “O Bebê de Rosemary”. Desde então, me vi imersa em seu universo dos apartamentos, no qual o isolamento manipula a mente a crer no que lhe convém. Mas, essa nos trai, nos ludibria e só podemos lidar com o rastro que fica do que vivemos (ou do que achamos que vivemos).

Polankski em “Baseado em Fatos Reais” se revisita e adicionado a Trilogia dos apartamentos um quarto capítulo. Mais simples que os anteriores, não tão glamouroso, menos complexo e com uma trama sem muitas camadas, o filme não pode ser considerado um fiasco. Ele mantém a tensão usando de estratégias visuais – cortes, figurino, maquiagem e cabelo, enquadramentos – para dar dicas sobre os caminhos que a narrativa está tomando.

No fim, não sabemos o tanto que Elle é real e muito menos acreditamos na plena inocência de Delphine, que em princípio é uma vítima pré estabelecida e, depois parece bem consciente de suas ações.

Todo artista é vítima e algoz de si, no processo criativo.

Yasmine Evaristo

Artista visual, desenhista, eterna estudante. Feita de mau humor, memes e pelos de gatos, ama zumbis, filmes do Tarantino e bacon. Devota da santíssima Trindade Tarkovski-Kubrick-Lynch, sempre é corrompida por qualquer filme trash ou do Nicolas Cage.

4 comentários sobre “Baseado em Fatos Reais: o conflito entre o criador e a musa

  • Olha lendo essa critica me peguei pensando que na verdade esse filme não me daria medo de assistir, comecei achando que ele era um terror forte mas agora já começo a entende-lo melhor. A fragilidade emocional é bem evidente nessa trama e me deixa cada vez mais curiosa. Obrigada por mais essa crítica maravilhosa.

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    • O terror proposto é muito mais o de lidarmos com nossos conflitos emocionais do que com o isolamento ou ameaças externas. A cada momento que penso no filme, gosto mais dele.

      Obrigada pelo elogio Luana.
      Abraços.

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  • Ver os personagens se interligarem em volta de si, tendo a simbologia do artista/musa é algo bonito de se ver. Ainda mais quando as relações confundem até certo ponto, o telespectador menos atento. Por isso, apesar dos pesares, é muito bom acompanhar um trabalho que nos deixa reflexivo ao ponto de saber o que é Real ou não.

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    • Exato Nathalia.
      Essa perspectiva da linha tênue entre artista e musa e, real e imaginário, proporcionam essa reflexão. Ao conversar com amigas e amigos que viram o filme, há quem crê que Elle era real e há quem crê que Elle era um alter-ego (mal resolvido). Ambas percepções proporcionam argumentos sobre dependência afetiva, emocional, relações femininas com o envelhecer, conflito do artista com a produção de uma obra, relacionamentos familiares abusivos, dentre outros temas.

      Acho isso fantástico.
      Abraços.

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